CINEMA EM BRANCO & PRETO / Take 1


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Benjamim de Oliveira, ator de ‘circo-teatro’ e palhaço negro (maquido de branco. “White face”, porque não?)
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Imagem popular: Visibilidade zero
Exterior/Noite

Entre outras e mais dramáticas conseqüências, a pobreza continuada e generalizada, na qual se permite que viva grande parte de nossa população, criou para a mídia do Brasil uma espécie de perturbadora “impropriedade estética”, causada pela contradição evidente entre a imagem real de povo não-branco, que efetivamente somos, e aquela imagem virtual, manipulada por intermédio de diversos artifícios, que insistimos em propalar para mundo como sendo o nosso look ideal.

Por que nos espaços da mídia (vista aqui como o conjunto de mecanismos de difusão social e cultural independentes) o Brasil aparece sempre assim, mascarado, fantasiado de uma outra coisa que não é ele mesmo?

Acreditem, esta não é uma conversa de filigranas ou irrelevâncias. Visibilidade é um axioma midiático por excelência, já que, a rigor, se um fato ou problema está invisível é porque ele não está acontecendo ou simplesmente jamais existiu.

Envergonhada talvez de nossa imagem real, nossa mídia – expressão mais evidente da maneira peculiar que a gente tem de olhar a nossa própria cara em espelhos simbólicos – tem demonstrado persistente intenção de falsear, justamente, o signo essencial de nossa personalidade: nosso fenótipo, a cor de nossa pele, os traços físicos mais marcantes, aquela face original que todo povo que se preza costuma assumir como orgulho nacional e patrimônio estético intocável.

Racismo é pouco – e vago – para definir esta estranha disposição de nossos meios de difusão cultural para, sub-repticiamente, ir sabotando a nossa auto-imagem. Que diabo de paranóia seria esta? Por que ficar durante séculos como uma espécie de “país michael jackson”, tentando esconder debaixo de um tapete pra lá de puído o perfil preto inzoneiro da maioria de nossos charmosos habitantes? Seríamos uma sociedade acometida por uma espécie de vitiligo moral?

Você viu quantas vezes, nos livros escolares, a cara do João Cândido, o almirante negro da Revolta da Chibata, um herói brasileiro tão ou mais significativo do que aquele tristonho alferes Tiradentes? E a cara do negro Oswaldão, aquele líder militar da guerrilha do Araguaia (se é que você sabe o que foi isto), aquela revolta que deu errado mas que contribuiu para a escalação de alguns de seus sobreviventes (a maioria já caída em desgraças éticas, é verdade) para o primeiro escalão do atual governo do país?

Como se poderá forjar um verdadeiro orgulho nacional, amor à pátria, sem a ampla difusão da imagem destes heróis de nossa nacionalidade, tenham lá a cor que tiverem?

Não se pode negar que, no âmbito de nossa mídia ligeira, aquela voltada para o jornalismo superficial e comezinho do dia-a-dia, o merchandising rasteiro, o jingle espirituoso, o outdoor de subúrbio, alguns traços, ainda que tímidos, de nosso perfil fenotípico têm aparecido.

Neste jornalismo ligeiro predomina, infelizmente, uma defensiva e, apesar de justificável, raivosa depreciação do outro. A pauta, como sempre, tem sido aquele rol de personagens não-brancos, atores eternos e subalternos de nossas piores mazelas, da violência urbana, do crime “organizado”, do jovem traficante armado com um fuzil de guerra, bandido assassino, defendido pela jovem favelada de shortinho leging, com o bebê no colo, aquela que jogava pedras no poder público, como uma louca, até o grand finale: a hollywoodiana imagem da carcaça retorcida de um ônibus em chamas (antes de haver o poder SS das milícias, é claro).

Para distensionar os ânimos e os espíritos, no restante desta mídia ligeira, nos anúncios de magazines femininos, nos programas de fofocas televisivas, nos outdoors etc. é concedido mais espaço a aspectos, digamos assim, arejados e mundanos: belas mulatas – geralmente sós –, jovens negros musculosos – acompanhados por falsas louras desinibidas – mulatos, morenos, morenas (muitas morenas), diversas imagens “Racialmente corretas”, no fundo apenas apelativas porque, subliminarmente tendem a associar negros e/ou mestiçagem a sexo aberrante, como anúncio de açougue light, animalizando o outro, do mesmo modo como se fazia no tempo da escravidão. É coisa de gente normal, isso?

Câmera discreta

Estereotipando e generalizando na sua cobertura sobre o dia-a-dia do Brasil real, os aspectos mais exteriores de nossa dramática questão social – muitas vezes de maneira histérica e sensacionalista –, tornando desta forma, totalmente invisíveis todos os outros aspectos positivos, o cotidiano e a cultura das pessoas não-brancas deste país, nossa mídia nada mais faz do que propaganda de guerra, incitando a opinião pública “normal” contra o outro, o anormal, mais ou menos como o fez aquela antiga imprensa standard de Bush, justificando bombas e barbaridades na invasão e ocupação do Iraque.

Seriam cidadãos americanos os nossos brancos normais? Seriam anormais fedayns iraquianos os nossos marginais não-brancos? Claro que não.

Como agravante, naqueles aspectos sociologicamente mais profundos que caracterizam a aceitação de nossa imagem nacional efetiva, não é difícil detectar-se a existência daqueles sutis artifícios usados para identificar e separar as coisas apropriadas para serem mostradas, daquelas que devem ser cuidadosamente maquiadas, editadas ou, simplesmente, escondidas dos olhos das pessoas “de bem”.

Um conjunto de elementos estéticos, que são fashion, style, low profile, positivos em suma ou que, simplesmente, funcionam, isolado de um outro conjunto de coisas que não devem ser mostradas, de jeito nenhum (a não ser em ocasiões socialmente corretas), porque são down, feias, incômodas e que, do ponto de vista comercial, são portanto negativas, não funcionam, sendo impróprias ao consumo – ou não recomendadas – aos olhos daqueles indivíduos considerados normais.

E quem seriam neste contexto tão patologicamente televisivo os normais do Brasil? São aqueles 30% que estão em pleno gozo de seus direitos de renda e cidadania, gente que, até prova em contrário, é predominantemente branca, beneficiária, como vimos, de um sistema de cotas firmemente assentado em mais de 500 anos de exclusão e invisibilização do outro.

A questão básica portanto passa a ser: por que, no contexto desta separação entre aqueles que têm daqueles que não têm – uma separação que, apesar de odiosa, poderia ter como atenuante o fato de ser naturalmente apenas social – o componente étnico, racial é tão determinante? Será inteligente (para não dizer justo ou correto) insistir numa imagem nacional tão despudoradamente falsa como esta que nossa mídia difunde, uma imagem calcada no perfil étnico dos brancos, tornando virtualmente invisível todos os, digamos, 70% restantes de não-brancos?

Afinal, serve para que a imagem daquele olhar constrangido do crioulinho magrelo, que tenta fazer malabarismo no sinal fechado? O que podemos fazer com esta imagem tão perturbadora senão deletá-la de nosso HD emocional, assim que o sinal se abrir? Não seria porque ela, do jeito como a tratamos, não serve para vender nada, senão a nossa brasileiríssima iniqüidade?

Deve ser por isso que, do ponto de vista estritamente imagético, daqueles registros sobre nós mesmos que legaremos à posteridade, a maioria esmagadora dos elementos culturais, por exemplo o teatro, a literatura, as telenovelas etc., continuam a ser, ad infinitum, simbolizados na maior parte das vezes, por personagens e atores do perfil étnico hegemônico.

Na literatura, entre a mais recente exceção à regra – Paulo Lins – e a última já se vão mais de um século. Antes de Cidade de Deus, a última foi aquela que narrava a pungente dicotomia entre a luz e a escuridão, representada pelo simbólico conflito ideológico latente, na obra de dois de nossos maiores escritores, ambos negros: Machado de Assis, aquele que ascendeu na sociedade branca tornando literariamente invisível, de forma brilhante, sua própria negritude, e Lima Barreto, aquele que, ao contrário, morreu louco tentando iluminar, de forma não menos brilhante, a sua (e a nossa) própria condição racial e suburbana, em emocionados romances.
E é nesta angustiante dicotomia, entre a luz e a sombra, que vai vivendo a nossa vacilante, vadia e, por isto mesmo, tão cinematográfica alma brasileira.

(Uma confortável cadeira será necessária para assistir um pouco mais deste drama no take 2 desta história meio ‘film noir’. Desliguem os celulares, por favor)

Spírito Santo

(Parcialmente publicado em O Observatório da Imprensa em 14/05/2003, http://www.oermundo.com.br e http://www.portal literal.com.br)

2 respostas em “CINEMA EM BRANCO & PRETO / Take 1

  1. Se existe uma vitória que provavelmente devemos atribuir ao atual movimento “black” (como eu chamo o atual grupo hegemônico no movimento negro brasileiro, cooptado pelos Democratas estadunidenses), essa possível vitória é o ganho em representatividade, o escurecimento da nossa identidade visual na arte e na propaganda. De resto, esse movimento mais atrapalha do que ajuda. Eu torço (e busco fazer minha parte) pra que a nossa imagem seja mais realista, mais compreensiva do que realmente somos. Mas discordo de que qualquer envolvido no terr0r1smo de Araguaia seja intitulado herói, seja qual for a cor da sua pele.

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  2. Republicou isso em Mamapresse comentado:
    Neste jornalismo ligeiro predomina, infelizmente, uma defensiva e, apesar de justificável, raivosa depreciação do outro. A pauta, como sempre, tem sido aquele rol de personagens não-brancos, atores eternos e subalternos de nossas piores mazelas, da violência urbana, do crime “organizado”, do jovem traficante armado com um fuzil de guerra, bandido assassino, defendido pela jovem favelada de shortinho leging, com o bebê no colo, aquela que jogava pedras no poder público, como uma louca, até o grand finale: a hollywoodiana imagem da carcaça retorcida de um ônibus em chamas (antes de haver o poder SS das milícias, é claro).

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