
Todo o conteúdo deste blog está assegurado sob uma licença Criative Commons

Na foto de 1968 eu numa entrevista que dei para Nina Chaves, colunista da coluna ‘Êle’ de O Globo depois de me destacar como intérprete e compositor num festival estudantil da TV Globo. Besta de doer com o sucesso súbito, meses depois estava na cadeia.
(Leia posts #01 e #02 desta série aqui)
O Barbeiro, o Padre e Eu mesmo
Não fosse o choque, impactante como um soco no estômago, o momento da prisão teria sido até engraçado. Havíamos planejado, meticulosamente, a pichação. A palavra de ordem, sempre escolhida pela cúpula da organização, naquele dia seria aquela que já andáramos escrevendo o mês inteiro por aí:
‘abaixo a ditadura!”
A pouco tempo lançada (na passeata dos cem mil, talvez), a inscrição já era clássica na época (embora não fosse assim tão banal, para o pessoal de fora de nosso submundo, como parece ser hoje em dia). A próxima inscrição esta sim, pesava a barra só de ser ouvida. Já decidida pela org. ela exigiria muito mais cuidado e segurança. Culhões mesmo, diria, com todo o respeito:
‘SÓ A LUTA ARMADA DERRUBA A DITADURA!’
O ‘Barbeiro’, por ser o mais velho de nós, foi quem comprou os frascos de spray: Preto e vermelho, o básico. A área que cobriríamos com nossa propaganda ia de Realengo à Bangu, passando por Padre Miguel, bairro onde eu morava. Fazíamos o levantamento na véspera, sempre no mesmo horário no qual faríamos a ação do dia seguinte. Era para conferir e cronometrar o horário das rondas que, na época, eram feitas por viaturas da polícia civil e jipes do exército (pontualíssimos), em horas alternadas, além de duplas de soldados da polícia militar, a pé ou a cavalo.
Verificamos ainda em Padre Miguel que o tempo entre as viaturas da polícia e o jipe do exército, era muito estreito para que pudéssemos pichar as ruas principais, mais visíveis. Decidimos ir até Bangu onde, ao virar na esquina da rua central, demos de cara com um choque da PM cheio de soldados, que estavam sendo distribuídos, em duplas, pelas ruas.
A tarefa rotineira de Agit-prop, expressão cifrada que, no jargão da época, significava ‘agitação e propaganda’ (basicamente, pichação, comícios-relãmpagos e panfletagens), teve que ser abortada. Não foi preciso discutir muito para que decidíssemos adiar a ação para a semana seguinte.
Éramos três: Eu, ali pelos meus 21 anos, o ‘Padre’ com 19 e o ‘’Barbeiro’, com 28. Voltamos a pé para Padre Miguel. ‘Padre’ (que de católico não tinha nada), era um menino muito branco e gordinho que, apesar de morar no Méier, parecia um estranho no nosso ninho suburbano, vítima perfeita para os marginais maconheiros, meus conhecidos de bairro, que ficavam ali, no lado mais escuro de um prédio do conjunto habitacional, em frente ao ponto do ônibus, prontos para dar um bote num desavisado qualquer e arranjar alguns trocados.
Caía uma chuvinha fina, ali pelas quase 2 horas da manhã. Paramos no ponto do ônibus, portanto, apenas para dar cobertura e apoio moral para o ‘Padre’. A viatura da polícia civil veio devagarinho, gelando de imediato a nossa espinha. Não deu nem tempo de ver os maconheiros desaparecendo, subitamente, na escuridão da esquina, como raios sem clarão.
_ ‘Mão na cabeça!”_
Gritou um dos policiais, portando uma metralhadora INA, daquelas feinhas, com o pente reto, parecendo de brinquedo, que eles usavam orgulhosos como se fosse uma Kalashinikov.
Éramos um operário metalúrgico desempregado e estudante de curso supletivo (eu), um empalhador de cadeiras (‘o Padre’) e um barbeiro. Bolsos revirados, nenhuma carteira de trabalho à vista, claro, ainda mais assinada. Aquela hora da madrugada, à toa, perambulando pela rua, podíamos ser tudo, principalmente ‘serviço’ a ser apresentado na delegacia pelos policiais que, aquela altura dos acontecimentos, não haviam prendido ainda nenhuma alma bendita.
Éramos o que parecíamos ser: ’pés-de-chinelo’ presos por ‘vadiagem’, uma espécie de não escrita ‘lei do passe’ do apartheid da antiga África do Sul, abrasileirada, que dava a chance dos policiais prenderem alguém, mesmo inocente e se redimirem com o delegado, para fazer jus às folgas nos dias seguintes, algo assim, rotineiro na época.
Nos trancaram na ‘caçapa’ e ficaram estacionados, sentados dentro da viatura, revistando, displicentemente, nossas carteiras. O mais gelado de todos era eu, porque sabia o que poderia acontecer quando revistassem a minha carteira. E aconteceu:
_” Pára! Pára! Esses caras são terroristas, pôrra!”_
Pularam da viatura como loucos, aos berros, mais em pânico do que nós, pobres diabos que ali, pasmos só pensávamos em não mover um músculo, não esboçar um gesto sequer que pudesse deixá-los mais nervosos.
Eu, que usava uma capa de plástico cinza, vagabunda, era o mais visado. Era minha a carteira pivô daquele drama. O policial da metralhadora gaguejava, com a arma apontada para nós, histérico, a ponto de nos metralhar ali mesmo, a qualquer momento:
_” Revista eles de novo! Revista eles! Mão na cabeça! Mão na cabeça!’
Para eles, era como se fôssemos homens bomba, prestes a explodir, coisa que nem se sonhava que ia mesmo existir um dia, mas que eles, naquele desespero sem tamanho, acabavam de imaginar. Era esta a impressão que tinham de um terrorista: Pânico, terror, o nome ligado, diretamente, à pessoa.
Fácil de se entender: Enquanto ação estratégica contra a Ditadura, a luta armada apenas começava, naquela que era uma época de transição entre o perfil do revolucionário comunista, político idealista e intelectual, que a polícia política reconhecia desde os tempos de Vargas, para o chamado ‘Terrorista armado’, figura ainda mítica e lendária, militante das novas organizações que surgiram do racha do PCB e sobre as quais eles não tinham ainda nenhuma informação (na verdade nem sequer sabiam ainda se estas organizações realmente existiam, de verdade).
————
Estávamos então, apenas iniciando o nosso treinamento paramilitar. Havíamos praticado tiro ao alvo no alto da Serra de Bangu, somente, três vezes. A primeira com uma velha garrucha enferrujada e outras duas com um pesado revólver 38, armas que o Barbeiro arranjou com um vizinho, sabe-se lá por meio de que desculpa esfarrapada.
Já havíamos recebido algumas tarefas de mais responsabilidade. Não comentávamos as tarefas uns dos outros, mas, pelo menos, eu já havia feito o mapa das imediações de um banco e das cercanias de uma unidade militar, provavelmente para servir de orientação para alguma ação prevista pela Org.
Naquela tarde, havíamos tido treinamento político ideológico. Estudávamos um livro do Wladimir Ilicht Lênin e eu, maníaco por escrever desde aquela ocasião, havia escrito, numa folha de caderno, o resumo de um trecho do livro, com interesse muito mais intelectual do que revolucionário. Foi esta folha, desdobrada, que o policial leu, assustado:
‘O ESTADO E A REVOLUÇÃO.
O ESTADO BURGUÊS DEVE SER DERRUBADO PELA VIOLÊNCIA.’
No dia seguinte, em nossas casas cercadas por grande aparato policial e militar (na minha, meus irmãos me contaram que chegaram a cercar todo o quarteirão) foi encontrado, como eles diziam, ‘farto material de natureza subversiva’. Na casa do ‘Barbeiro’, que servia de aparelho para a organização na nossa área de atuação, acharam um mimeógrafo e um velho fuzil (além de mais fartura de material subversivo).
Leitor voraz, já naquela época, perdi ali naquela apreensão bombástica, toda a razoável biblioteca que já havia acumulado àquela altura. Entre outras ignorâncias recorrentes daquelas ações truculentas, apreenderam o meu exemplar se ‘O Vermelho e o Negro’ de Stendhal, achando que o ‘vermelho’ se referia a alguma subversão destas aí.
Transferidos para um quartel do exército, em São Cristóvão, bairro próximo ao centro do Rio, no dia seguinte, ouvimos pelas frestas do camburão, o delegado responsável pela nossa prisão, parar na redação de vários jornais para declarar-se o autor da prisão dos ‘chefes da subversão na zona rural do Rio de Janeiro’, um exagero absoluto.
Meses depois, uma de minhas tias, constrangida com o estigma que pairou sobre a família, jogou fora os recortes com as notícias da campanha de autopromoção do delegado, escrita em pequenas manchetes. Naquela época, um morador de subúrbio, ser preso, seja lá por que motivo fosse, era sempre vergonha para os parentes, suprema humilhação.
O estigma ganhava contornos mais intensos ainda, quando se sabia que o tal delegado (Haroldo de Matos), tinha o seu nome, diretamente, associado a um esquadrão da morte muito atuante nos subúrbios cariocas, conhecido como a famigerada ‘Invernada de Olaria’.
Um lado bom para a história: Por termos sido identificados, logo de saída, como militantes políticos, escapamos de uma eventual morte súbita e vexatória, como meros marginais, nas mãos daqueles carrascos de bandidos. Me lembro que as vítimas destas execuções ou assassinatos ‘seletivos‘- algumas, sabe-se lá, até completamente inocentes – apareciam trucidadas em terrenos baldios com um cartaz sobre o corpo escrito com o motivo da sentença de morte:
_ “Eu assaltei!” ou “Eu matei!”, “Eu estuprei!”…
A população com um instinto sádico consumia ávidamente os jornais populares, ‘A Luta Democrática’ e ‘O Dia’ que estampavam nas bancas, com estardalhaço estas fotos dantescas.
————–
Como estávamos preparados para o pior as cenas na delegacia, chegaram a ser emocionantes. Recebemos a solidariedade geral de um grupo de marginais e contraventores.
Um apontador de jogo de bicho, meu vizinho, ficou na mesma cela conosco, por alguns poucos minutos. Foi o tempo suficiente para que eu pudesse mandar por ele, um bilhete para minha mãe que, agindo rapidamente conseguiu descobrir que me entregariam para o Exército. Outra sorte grande: Sempre acreditei – com certa ingenuidade talvez – que o fato de minha mãe saber onde eu me encontrava preso, me protegeu da eventualidade de morrer naquele quartel do exército.
Desconfiado de nossa rápida integração com aquela hospitaleira bandidagem, o delegado nos transferiu para uma cela separada, onde já estavam três prostitutas presas de madrugada fazendo trottoir. Também solidárias, elas nos deixaram o resto de um pacote de pão de forma que, amainou a nossa fome e nos acalmou o juízo. Já alta madrugada, para relaxar, fizemos uma bolinha com o celofane do pacote e batemos uma ‘linha de passes’, ali mesmo, os três sozinhos, com o moral alto, naquela nossa inesperada prisão ‘especial’.
Lá para as tantas, já de manhãzinha, o delegado entrou na cela para nos interrogar. Perguntou coisas vagas, quase estúpidas, sobre nossa ’ação subversiva’ e, esfregando as mãos com ansiedade sádica, manifestou um desgosto enorme de não poder nos ‘encher de porrada’, O fato de sermos presos ’políticos’, afeitos à jurisdição das forças armadas, o impedia. Éramos ‘reserva de mercado’ da Ditadura, deduzimos aliviados. Não se podia dar porrada no preso alheio.
(‘Terrorista’ alheio, melhor dizendo).
Foi assim, com este status, apesar de tudo, que fomos presos naquela noite chuvosa no fim do ano de 1968. Começou nisto a quase saga, sem muitas glórias, da minha prisão. Tirando um estranho e curto intervalo de liberdade (um mês, se muito), no qual pretenderam, nos usando como isca, pegar outros militantes, só fui libertado vindo do presídio da Ilha Grande, num dia qualquer de 1970, para depois de uma breve readaptação, reingressar na luta, de forma semi clandestina, até 1971.
A história deste mês livre, fugido de casa (oficialmente estávamos presos), assumindo a clandestinidade, me escondendo em trens noturnos, favelas, e outros covis remotos, procurando, inutilmente por asilo político para fugir do país, é um caso à parte, que posso contar uma hora destas. (o asilo político, por uma estranha ironia burguesa sempre nos foi recusado, por várias embaixadas. Aparentemente um operário metalúrgico negro, um empalhador de cadeiras e um barbeiro eram considerados seres medíocres demais para merecer refúgio político no exterior)
————
1972, já livre da prisão há meses, foi ano da minha última relação com a organização, meu contato, um sujeito bem mais jovem que eu, aluno do famoso colégio estadual André Maurois, me pediu socorro para poder fugir do Brasil. Muitos militantes que eu conhecera, a maioria assim, de relance, me disse ele, já haviam sido presos, a maioria, haviam sido mortos em troca de tiros ou pela tortura.
Soube nesta época que a nossa misteriosa organização – a Var Palmares, segundo deduzi lendo o cabecário das enfadonhas apostilas de capacitação política que líamos por dever de ofício – reduzida à meia dúzia de militantes, à caça de uma rota de fuga, nunca havia sido composta por mais do que 150 pessoas. Loucos! Nos julgávamos um pequeno exército e não passávamos de um bando de ferozes idealistas, gatos pingados, magros, tensos, tristes e ‘brancaleônicos’.
Admirável juventude esta, da minha época.
O codinome modesto deste meu último contato (Zé), escondia o sobrenome que parecia ser de uma família importante da zona sul do Rio de Janeiro. Identifiquei-o num retrato de ‘procurado vivo ou morto’ que vi na estação da Central do Brasil, logo que ele, depois de ficar escondido em minha casa, com a sua também jovem companheira, por cerca de 15 dias, cruzou a fronteira do Uruguai, pulando dali para a Argentina, para nunca mais ser visto, pelo menos por mim.
Ter salvado a vida daqueles dois jovens companheiros – por onde andarão? – talvez tenha sido a única glória real da minha curta vida de revolucionário pé de chinelo. Meu codinome era Aníbal, tirado de um personagem que me apareceu do nada, num sonho, assim, sem pé nem cabeça.
Como o Aníbal dos livros de História, talvez eu quisesse mesmo é ser grande. Dores do crescimento, foram as que senti naqueles primeiros dias de prisão.

Eu recebendo o prêmio de Norma Blum 4 meses antes de entrar em cana
É desta época soturna – e destas dores – este prosaico poema.
Dias negros
Nos dias negros desta espera
eu te molho os cabelos de água limpa
e te promovo à ave de plumas benfazejas
(aquilo que temo invento morto no gosto de fumo dos meus beijos)
Nos dias negros, do ferro de minhas convicções
eu te prometo uma vida de milagres
e me esqueço da impassibilidade do tempo
que passa por nós em branco
Apesar do advento da mentira como mola mestra deste mundo
apesar da moda da infidelidade às coisas mais puras
estamos na época do amor e da morte
(a extrema-unção da dor está em nossa juventude)
Apesar dos dias negros
tu me deste a chance e a passagem
através da lágrima oca
que se transformará em saliva de sorriso
Apesar de tudo estarei nas curvas do teu corpo
ruminando auroras.
29/11/1971 (Ainda me assinando Antonio José do…)
Spírito Santo
Texto de 2007 atualizado em 01 Janeiro 2011
Curtir isso:
Curtir Carregando...