A faxina de Zumbi sem Palmares

Foto: Guilherme Pinto/ Agência O Globo

                                                   Máscara-retrato do Rei  (Oba) Oni

Máscara de bronze de Oba Oni com 36 cm de altura (tamanho de uma cabeça humana normal) da coleção do Ife Museum, Nigéria .

Salvando as aparencias

Nem todas as anuais lavagens simbólicas das baianas do reciclado Bloco Filhos de Ghandi local, poderiam dar conta da limpeza desta mistificação tão bem intencionada que foi a criação do Monumento à Zumbi de Palmares na Praça Onze, centro do Rio de Janeiro.

Nenhuma orquestra de ogans de Candomblé, toques de batás, de runs, de rumpis, de lés, de ilus, de nenhum tambor yoruba, nenhum banquete de ebós–iguarias em alguidadares de puro barro, ofertados piamente à todos os orixás do panteão. Nenhum ponto para Ogum, Xangô, Oxossi, limparia a barra-karma de uma estátua de um negro rei jêje-yoruba, condenado a ser na terra do racismo sem palmeiras, o símbolo mais pomposo e equivocado da negritude nacional.

Nada adiantará. Nem Bopes, nem UPPs, câmeras de segurança, caveirões. A horda de jovens e velhos racistas-nazistas de plantão estará sempre, anualmente a postos para, na calada da noite, emporcalhar a cabeça de bronze do homem de suásticas ou pintá-la de branco como máscara de carnaval, simbolizando a hedionda recorrência do nosso racismo covarde e abjeto na busca nostálgica pela hegemonia do mal, amém.

Limpeza eterna parece ser a sina dos faxineiros de Zumbi.

Vivo dizendo: A representação iconográfica falseada do negro tem sido desde que o Brasil existe, um comportamento de natureza quase psicótica dos nossos artistas. Como ocorre, aliás, em todos os setores de nossa cultura envolvidos com a representação imagética, historiográfica, etc. do povo do Brasil, o racismo impregnado profundamente na alma de nossa elite intelectual (formada, por motivos óbvios por pessoas majoritariamente auto-identificadas como ‘brancas’) tem cumprido com fidelidade canina a sua missão de ser mecanismo de omissão, mascaramento, invisibilização ou ocultação de tudo que se refere à herança cultural dos africanos no Brasil, numa relação de baixa-estima anti-nacionalista (o ‘complexo de vira-latas’ que Nelson Rodrigues propôs), realmente patológica.

Lavagem cerebral?

Parece incrível, mas neste Brasil Fake tropical a negação de uma parte de nós mesmos, de forma renitente é sempre o que predomina. Somos um projeto imagético de uma nação sem negros – ou com negros fashion que só podem ser mostrados enquanto portadores passivos de uma cultura negra tutelada, exótica, embranquecida, idealizada, mistificada enfim, totalmente afastada de nossa real formação de nação constituída de povos diversos, como se fosse possível a um país ser representado sem a face real de parcela tão esmagadora de sua população.

Foi o que aconteceu – como não podia deixar de ocorrer – com a ‘cara’ de Zumbi.

Faxina étnica?

Mas há sim uma faxina possível, cada vez mais plausível que é a luta pelo restabelecimento da verdade histórica sobre Zumbi e seu Palmares real.

Muitos já se deram conta, por exemplo, de que a estátua da cabeça que representa Zumbi de Palmares na Praça Onze no Rio de Janeiro, na verdade não passa de uma réplica muito ampliada de uma cabeça de bronze da cidade de Ife, Nigéria, aproximadamente do século 12, representando a cabeça do Rei Oni (Oba Oni). Oba Oni?

Algum orixá desconhecido? Claro que não! Você sabia disto? Pois fique logo sabendo:

“…Na estátua de Brasília, Zumbi aparece como homem comum, sem quaisquer adereços ou símbolos, apenas um rosto humano, sem grandes idealizações. No centro do Rio de Janeiro, o mesmo Zumbi aparece representado de forma totalmente diferente. Sem os traços que caracterizam o homem comum e real da estátua de Brasília, o Zumbi do Rio se aproxima das formas ideais de uma entidade africana, e aparece despido de personalidade num rosto que evoca nobreza real, com sua coroa de contas de vidro.. “

Revista ‘História” 09/09/2007

Curiosamente como se viu – na verdade, como já disse e apesar das exceções, este é um equívoco recorrente no Brasil quando se trata da representação da cultura do negro – esta cabeça e Ifé foi mesmo usada como modelo para a estátua de Zumbi de Palmares, líder quilombola de ascendencia, muito provavelmente angola-conguesa e não yoruba-nigeriana como a imagem sugere. O professor-doutor da Uerj e artista plástico Roberto Conduru escreveu a respeito na revista África um insinuante texto, atribuindo ao sociólogo Darcy Ribeiro a ‘culpa’ por esta equivocada homenagem a Zumbi representado aqui pela cabeça de Oba Oni.

…”Idealizado por políticos locais e representantes do movimento negro (o vereador José Miguel foi o autor do projeto de lei e grande batalhador pela construção do monumento  (nota minha), o monumento a Zumbi dos Palmares deveria ocupar inicialmente um espaço no Largo da Carioca, no centro do Rio de Janeiro, onde chegou a ter a pedra fundamental lançada em 1982.

No ano seguinte, os organizadores da homenagem decidiram transferir o projeto para o Parque do Flamengo, mas o monumento acabou finalmente erigido, em 1986, perto da antiga Praça Onze, um dos berços do samba e local emblemático da cultura afro-descendente no Rio de Janeiro. Na visão da historiadora Mariza Soares, essa homenagem a Zumbi feita de concreto armado e metal é o “símbolo maior” de uma “tentativa de monumentalização da negritude” empreendida pela administração de Leonel Brizola, que governou o estado do Rio de Janeiro entre 1983 e 1987.

Junto com o Sambódromo e a escola Tia Ciata, o monumento forma um complexo que visa, em seu conjunto – segundo Mariza Soares –, à “comemoração da negritude”.

…A iconografia de Zumbi não proveio de Alagoas, estado no qual estão localizados os remanescentes do Quilombo de Palmares, ou de outra parte do Brasil. Darcy Ribeiro se apropriou da forma de uma escultura pertencente ao acervo do Museu Britânico, deslocou-a para outro continente, mandou ampliá-la de 36 centímetros para três metros, fundiu-a em 800 quilos de bronze e a instalou numa das principais vias públicas da cidade do Rio de Janeiro.”

Roberto Conduru – Revista História n°20   

Na verdade já se sabe hoje em dia que não era nada impossível a missão de descobrir senão a verdadeira fisionomia, pelo menos uma imagem bem aproximada de Zumbi de Palmares. E convenhamos que não se soube disto antes por pura incúria e descaso de nossa historiografia acadêmica no trato do tema ‘O negro no Brasil’.

Aliás, a iconografia sobre Palmares de certo modo, considerando-se o caráter remoto da época (sec.17) é até bastante profusa. Em grande parte ela foi brilhantemente realizada pelos pintores holandeses trazidos para o Brasil por Maurício de Nassau, exatamente para este fim: produzir uma iconografia do chamado Brasil holandês

Entre estes artistas destacou-se Albert Eckhout , a quem são atribuídas muitas imagens de negros não-escravos em Pernambuco, entre elas um guerreiro negro estilizado e uma impressionante retrato de um misterioso e arrogante negro rebelde, armado de espada, pintura ainda sem identificação do autor, mas com todos os elementos de ter sido pintada por Eckhout  no Brasil  (veja mais posts sobre o assunto neste mesmo blog)

Máscara de cobre de Oba lufan com 36 cm de altura (tamanho de uma cabeça humana normal) da coleção do Ife Museum.

Além das aparencias

Entre estas cabeças encontradas, atualmente expostas no Ife Museun (depois de resgatadas do Museu Britânico que durante muitos anos teve em seu acervo peças saqueadas durante a invasão britânica à Nigéria no século 19), existe esta outra, sem o elmo (cujas incisões de encaixe aparecem nitidamente na foto) que os especialistas afirmam ser do Rei Lufan.

Oba Lufan (‘Oba’ em yoruba significa, literalmente, ‘rei’,’ chefe’), curiosa e provavelmente é o mesmo personagem venerado no candomblé brasileiro sob o nome de  ‘OxaLufan, corroborando, pelo menos em parte, a tese atribuída a Pierre Verger de que muitos – senão todos – os orixás do panteão do candomblé brasileiro, foram na verdade reis e figuras importantes de povos da região de Ife e Oyó (onde reinou ‘Sangò’/Xangô’) que se tornaram célebres a ponto de serem eternizados, ou venerados pela história oral das pessoas de sua nação, sob a forma de  orixás (palavra da língua yoruba ‘orisa’ que significa, literalmente ‘imagem’, ícone’, por extensão‘santo’)

As incisões na peça, muito comuns na arte escultórica de Ife (cuja função parece ter sido a de perpetuar a memória dos reis por meio de retratos tridimensionais e bastante fiéis deles (como ocorreu com os quadros de pintores da renascença européia) podem  denotar  que o personagem usava barba e bigode (da mesma forma que o Rei Oni-‘Zumbi’) além de portar na cabeça, provavelmente uma espécie de elmo ou capacete cerimonial.

Oba Lufan, como se comprova após a identificação desta sua cabeça-retrato (leia mais em “African Art’ de Frank Willet) foi um dos mais importantes reis do Reino de Ife. A ele é atribuída inclusive a introdução deste estilo escultórico naturalista pouco comum no resto da África, onde estilos inquietantemente ‘modernistas’, estilizados enfim, predominam até hoje em dia.

O estilo naturalista de Ifé – que, a se julgar pelos estudos do ‘pai da história’ Heródoto pode ter tido a mesma origem do naturalismo escultórico grego:  o  antigo Egito. parece ter evoluído de origens bastante remotas, quem sabe no âmbito de sucessivas migrações para o oeste de povos que formaram muitas outras civilizações pelo caminho – entre estas o Reino de Ifé, – povos estes oriundos de regiões mais ao leste do continente como a Núbia e o Egito talvez.). Nesta mesma provável rota migratória encontraremos também a impressionante arte escultórica em bronze do Benin (ex Dahomey)

Um estudo evolutivo desta técnica escultórica pode ser feito em parte, com a comparação meticulosa entre peças de épocas mais remotas, sempre caracterizadas pela representação naturalista de reis e rainhas, em terracota, bronze, cobre, e às vezes em épocas mais recentes, em madeira.

Irmã da cabeça do Rei (Oba) Lufan é linda a estátua do rei Rei (Oba) Oni. Ela é altiva e impressionante como uma esfinge ou um faraó, mas ela evoca uma majestade, uma realeza exageradamente fantástica, irreal.  Esta verdade que não quer calar é que me inquieta: No fundo no fundo o que temos tanto a ver assim com a nobreza orgulhosa de Ifé?

ObaOni não é Zumbi, ObaLufan não é uma entidade mística. A cosmogonia de uma única seita religiosa – o Candomblé – não dá conta de explicar e representar a cultura de um país inteiro, de origens e influências tão diversas, tão diferentes desta Nigéria-fake que impinjiram a nós, mesmo que fosse apenas no âmbito desta nossa negritude tão fugidia quanto relativa.

De que nos vale uma imagem que como uma cortina de seda branca, ora tolda a visão da selva úmida de onde vieram os africanos que habitam em nós, ora revela uma quantidade enorme de pirâmides de papel e mistificações grosseiras? De que nos vale acreditar nas mentiras cordiais ditas sobre estes mesmos quase africanos em que nos tornamos, ao longo desta nossa história ainda tão obscurecida pelas sombras do racismo de aparências e desaparecimentos que nos governa? De que nos adianta assim, cordatos, submissos – ainda hoje escravos de nós mesmos – aceitarmos estas belas fantasias enganosas, no fundo no fundo inventadas pelos ‘brancos’?

De que nos adianta, enfim mentirmos sobre nós mesmos (e digo nós TODOS, pretos e brancos assumidos deste Brasil)?

Afinal, tanto como o triste alferes mineiro (na verdade um português), Zumbi de Palmares (na verdade um angolano) é um herói brasileiro d’a gema’ não é mesmo…ou não?

Vergonha na cara e faxina na alma é do que precisamos. Uma lavagem nacional sem senhor algum a nos ditar onde está o nosso destino ou qual será o nosso bom fim.

Deixarmos de ser falsos brancos para sermos francos, isto sim.

Spírito Santo

Junho 2011

6 respostas em “A faxina de Zumbi sem Palmares

  1. Pô, Helio, Na boa: penso que a conversa deveria estar bem acima deste proselitismo religioso que não esclarece nada. Não estou interessado na crença religiosa de quem quer que seja. O tempo inteiro falo sobre a política cultural e antropológica do apagamento compulsório das matrizes africanas que informam a nossa cultura em benefício de uma suposta ‘supremacia’ do grupo minoritário em termos gerais, com perfil social elitista, genericamente denominado “Nagô”.

    Todo proposta de supremacismo étnico de uma minoria é elitista e reacionária no contexto de sociedades racistas como a do Brasil

    A ampla e franca exposição que faço de elementos da cultura bantu tem apenas este objetivo: Compensar este enorme desvio etnológico que é para mim um tiro no pé para os movimentos negros do Brasil e o estabelecimento de bases culturais mais pertinentes a luta contra o racismo.

    A ‘panelinha nagô’ e esta defesa extremada de sua importancia tão relativa – ainda mais tão restrita ao campo difuso da religião – é pois, para mim um equívoco. Digo, afirmo e tento provar. Ninguém precisa concordar.

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  2. Independente do seu dicionário , e sem penduricalhos, santos catolicos ( exu/santo antonio(Bahia) São Jorge //ogum , Santa Barbara / Yansã , São Gerônimo /Xangõ , etc, etc , considerando seus similares na cosmologia Bantu , são usados como forma sincrética para permitir os cultos , bantos e nagõs , sendo que este sincretismo acaba de tal forma incorporado ,( vide os pejis de qualquer casa de umbanda ou camdomblé em suas variações ) que fazem parte deles , sendo seus dias ( dos santos) comemorados em conjunto com a propia igreja católica , são estratégias similares visando o mesmo objetivo , ou seja a livre culto de orixás e inquices ou nkisses como queiras , a intenção não é acertar nenhum submarino bantu , pelo contrario e fazer com que todos os sub-marinos
    da diaspóra venham a tona e mostrem suas potencialidades ,sem presupostas “superioridades” ou inferiioridades , caso contrario corremos o risco de nos tornarnos Bantocratos e nagocratas imperdernidos , eu por exemplo sou Flamengo e Imperio Serrano.

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  3. Rs rs rs rs! Contra ataque nagô aqui no post. Já não era sem tempo.
    Tiro no pé. Se fosse ‘batalha naval’ seria tudo ‘água’. “Orisa’ (com aqueles acentos que o meu teclado não tem) é, literalmente ‘ícone’. Do mesmo modo ‘nkisse’, termo do bakongo clássico também é.

    Tirei isto de um dicionário respeitável.

    É preciso não enfiar penduricalhos ideológicos ou religiosos nas palavras que são aquilo que, simplesmente são. Quando um yoruba vê uma imagem de virgem Maria, branca de marré de si, a palavra que a língua dele tem para descrever o objeto é ‘Orisa”. Apenas uma palavra entre tantas.

    O resto é bobagem misticista.

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  4. Ori xá , senhor + cabeça , nada tem a ver com imagem ou ícone e se um certo etnomusicologo certa vêz declarou ser palmares , um estado africano encravado no Nrasil , como poderemos ter um herói legitamamente brasileiro ? e é bom separar o azeite do dendê a tal cultura fashion é encontrada também nos cultos de origem Banto , principalmemte nos rituais “traçados” Angola -Geige , quem representa quem ?

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  5. òtimo post, realmente existe uma confusão da memoria coletiva nacional sobre a indentidade dos africanos que vieram para o brasil.

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