Verger: A cegueira não é branca, a cosmologia é que foi fraudada

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A etnofantasia  nagô à luz do bom devoto Pierre Verger 

(Sim. Este papo – e não este texto exatamente – também está no livro)

Este texto do Pierre Verger que reproduzo em gordas ‘pílulas’ abaixo, é uma das minhas principais fontes para defender a tese de que o mito da ‘Supremacia’ Nagô’  ainda em voga no Brasil e na Diáspora toda, foi meticulosamente construído ao longo do século 19 por diversos meios e intenções.

(E está no livro porque ainda dizem por aí que o Samba – como tudo do negro no Brasil –  também seria nagô.)

A outra referencia essencial que utilizei, entre tantas outras, foram as teses do antropólogo Luiz Nicolau Parès das universidades de Michigan e Federal da Bahia.

Parès entrou na dança porque eu, embora já intuísse há tempos, não sabia ainda (nem sei se Verger chegou a saber) que a ‘construção deste conceito, para mim socialmente venenoso e deletério, tinha outros fundamentos ideológicos muito mais perversos do que as meras distorções etnológicas as quais Verger se refere de forma tão enfática.

(E reitero aqui que só insisto no tema porque passei a semana ouvindo provocações de uns poucos leitores baianos que insistem em tentar desqualificar meus argumentos – que nem exclusivamente meus são – com abobrinhas apressadas e mal passadas).

O fato é que – quer queiram ou não queiram os bairristas baiano-nagô – sabemos agora que este processo de ideologização do Candomblé também se deu no decorrer do século 19, localizado no eixo Lagos-Salvador, para só depois provavelmente assumir– embora não se saiba se deliberadamente – a função de anteparo atenuador de conflitos, nas tensas relações sócio raciais no Brasil, tornando-se um dos instrumentos cruciais da afirmação de uma ideologia de casta (uma minoria negra superior ao resto), a serviço do mesmo elitismo original da seita fundada no século 19, calcado numa suposta ‘superioridade’ da minoria étnica nagô perante a cultura dos demais (a maioria) dos negros do Brasil.

O tema quente e cabeludo ao qual tenho me dedicado com especial afinco porque o considero crucial para o avanço do impasse produzido pelo racismo no país, embora tenha atraído a presumida atenção de muita gente não tem alimentado ainda tanto feedback quanto eu gostaria. Ao que parece o mito está fortemente arraigado no pensamento dos movimentos negros do país, como uma cegueira branca de quem não quer ver.

Tirando esta minha ênfase sentida, o certo é que poucos se arvoraram até agora a emitir alguma opinião. Há como disse e com efeito, apenas comentários ofendidos, ressentidos – alguns alarmistas, terroristas até – em geral me admoestando sarcasticamente, me tratando como um iconoclasta abusado ‘denegrindo’ um conceito chave, baluarte da cultura negra do Brasil: o velho tabu do Candomblé.

Acho lamentável – na verdade constrangedor – que tanto esforço argumentativo, baseado, como já disse em teses muito bem aprofundadas de outros respeitáveis estudiosos do assunto (aos quais eu recorro e cito insistentemente) esteja sendo tratado com tanta parcimônia e descaso, incitando muito mais a arrogância de certos leitores ditos especialistas interessados no assunto do que uma generalizada e madura reflexão, como se poderia esperar.

Pura incúria intelectual, a repercussão surda que o tema provoca parece até com aquela empáfia burra dos reis de terra de cegos, aqueles que ninguém tem coragem de avisar que estão nus.

Bem. Sirvam-se aí então. O texto do Pierre Verger (um clássico estranhamente tão citado quanto pouco lido) é uma referencia imperdível para quem quer mesmo começar a entender o assunto.

Melhor para mim, que tendo Verger como advogado, posso me reservar o direito de, desta vez nem gastar mais meus modestos argumentos de franco atirador.

É de cadeira ou camarote que compartilho então estas claras idéias do não acadêmico douto que foi Verger, sincero adepto e devoto do bom Candomblé, fotógrafo e etnólogo franco-afro-brasileiro de coração, referencia internacional sobre o tema.

Faço minhas – pelo menos conceitualmente – as palavras dele. E Nem está mais aqui quem falou.

Etnografia yoruba e probidade científica

Pierre Verger em seu clássico artigo (trechos)

“…As definições dadas aos orixás, os deuses iorubas, foram efetivamente, a partir de determinada época (1884, para sermos precisos) embelezadas com detalhes tão pitorescos quanto inexatos. Essas definições foram a seguir eruditamente retomadas, doutamente citadas e entusiasticamente comentadas pela maioria dos que a partir de então escreveram sobre o assunto..”

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“…Ao longo de minhas pesquisas, pude constatar de que maneira informações expressas muitas vezes descuidadamente por pessoas, respeitáveis noutros domínios, criaram uma tradição aparentemente lógica, mas enganadora. Com o tempo foi-se assim acumulando vasta documentação escrita, tida como erudita porque baseada em textos, a única fonte válida aos olhos dos letrados, mesmo que esses textos fossem inspirados por escritos anteriores incorretos e até contrários à verdade. Essas informações foram copiadas e publicadas inúmeras vezes, sem que sua autenticidade fosse posta em dúvida…“

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“…Eis porque somos obrigados a pôr em questão neste artigo certas informações que estão na origem de sistemas teogônicos e cosmogônicos eruditos e a constatar que, estando desprovidas de fundamentos, não passam de gratuidades ou de construções mais ou menos habilidosas do espírito.”

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“…Ao lado e independentemente dessa tradição oral recolhida no coração da terra iorubá, a etnografia religiosa iorubá tem sido vítima, desde 1884 (e o é ainda), de informações fantasistas recolhidas muitas vezes em regiões periféricas daquelas onde a civilização iorubá se desenvolveu. Felizmente, nos é possível encontrar os autores, assinalar o momento exato do nascimento e o encaminhamento dessas noções errôneas através dos diversos escritos que têm tratado da questão. Também nos é fácil determinar o grau de competência e de seriedade, avaliar o crédito que pode ser concedido às suas informações e compreender o que está por trás de tudo que possa influenciar o caráter dos informes publicados por eles…”

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“…Nas linhas seguintes desenvolveremos esses diversos pontos detalhadamente, pois essas falsas tradições têm figurado como um postulado e freqüentemente têm sido aceitas sem discussão por numerosos autores.”

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“…Alonguei-me um pouco sobre os danos da influência das lendas inventadas pelo padre Baudin e copiadas pelo tenente coronel Ellis, mas era necessário fazê-lo, pois os absurdos publicados por eles servem de ponto de partida e de inspiração para outras e de fundamento para dissertações sobre sistemas teogônicos habilmente estruturados e ornados com efeites psicológicos e genéticos sofisticados, sobre os quais falaremos mais adiante.”

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As lendas do padre Baudin tiveram vida longa, atravessaram o Atlântico, não na memória dos escravos transportados, pela simples razão de que o tráfico negreiro já tinha acabado na época em que Baudin convertia os pagões, mas por intermédio do livro de Ellis, de que Nina Rodrigues teve conhecimento ao escrever seu livro Os Africanos no Brasil…”

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“…Este texto de Epega, juntamente com as indicações errôneas do padre Baudin, serve de fundamento para um livro recente intitulado Os Nagô e morte  (Juana Elbein dos Santos, 1975) onde a autora expõe uma concepção toda pessoal das leis que regem o que ela chama de “entidades sobrenaturais” (ib.: 72) dos Nagô (Iorubá). “

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“…mas não posso deixar de lembrar que durante a pesquisa de campo geralmente se estabelece uma situação desagradável entre o pesquisador e a pessoa entrevistada. Esta última pega rapidamente o sentido e o pensamento do pesquisador, e cheia de boa vontade, dá as respostas que casam com a hipótese da pesquisa desejada. Ainda que o informante não deforme voluntariamente os fatos, tenta ao menos exprimir-se em termos que ele quer tornar compreensíveis ao interlocutor, sendo o resultado a maior satisfação deste último e um grande prejuízo para a verdade. “

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“…O abade Bouche reconhecia isso entre 1866 e 1975 (Bouche, op.cit.: 109), dizendo “que os intérpretes negros visam menos a ser exatos do que a não descontentar o branco (freqüentemente irascível quando se vê contrariado em suas teorias pré-estabelecidas), (4) e eles (os intérpretes) não se incomodam com interpretações que sabem ser de seu gosto, ou, pelo menos, de suas idéias…”

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“…O que nos entristece e nos constrange no livro da autora (Juana Elbein dos Santos)— que é sua tese de doutoramento de terceiro ciclo pela Sorbonne — não é tanto o fato de ela haver-se inspirado em informações errôneas ou provenientes de etnias não-nagô, mas o fato de que, para edificar e “estruturar” sua obra, ela manipule e modifique os documentos citados em apoio ao sistema concebido por ela, o que é grave e constitui falta total de probidade científica…”

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“…A posição de todos esses orixás depende da história das cidades onde representam divindades protetoras. Xangô, quando vivo, era o terceiro rei de Oyó; Oxum fez um pacto em Oxogbo com Laro, o fundador da dinastia dos reis locais; Odùdùa, fundado da cidade de Ifé, cujos filhos se tornaram reis de outras cidades iorubás, conservou um caráter mais histórico e até mais político que divino e não tem nada a ver com os “ventres fecundados” da autora de Os Nagô e a morte…”

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“…Ela  (Juana Elbein dos Santos) fundamenta então agora uma teoria bastante sofisticada, confundindo, entretanto, e reunindo sob uma mesma designação noções que são na realidade diferentes, sem haver mesmo entre elas nenhuma relação de significado. O mais grave é que o conteúdo da obra Os Nagô e a morte, como aconteceu com escritos precedentes, citados no início deste artigo serve de referência e ponto de partida para novos trabalhos baseados assim em informações inexatas. Existe na autora uma tendência um pouco hoffmanesca para as almas-do-outro-mundo, as feiticeiras e Exu. “

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“…Ela tem todo o direito de seguir suas inclinações, mas onde estamos menos de acordo é quando, partindo de dados inexatos, algumas vezes manipulados, ela edifica “sistemas” de uma lógica impecável, muito bem acolhidos, diga-se de passagem, nos congressos científicos internacionais, mas que, examinados com cuidado, são um tecido de suposições e de hipóteses inteligentemente apresentadas, não tendo nada a ver com a cultura dos Nagô-Iorubá e correndo o risco de contaminar as tradições transmitidas oralmente, ainda conservadas nos meios não-eruditos…”

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…Será que ainda falta dizer alguma coisa?

Spirito Santo

Setembro 2011

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Nota de Kandimba:
Juana Elbein dos Santos – Antropóloga e coordenadora geral da Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil- Secneb). Seus livros ‘Os Nagô e a Morte,  Pàde, Àsèsè e o Culto Éguns na Bahia’ foi Tese de Doutorado em Etnologia na Universidade de Sorbonne em 1972, traduzido para o português pela Universidade Federal da Bahia.

7 respostas em “Verger: A cegueira não é branca, a cosmologia é que foi fraudada

  1. Hi hi hi! O caldeirão de bruxaria fica aqui fervendo. Sermos heréticos é o que nos vai salvar, com toda certeza. O conformismo é a morte.

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  2. Então. Li este artigo dele numa revista chamada ‘Religião e Sociedade’ há bastante tempo, sei lá…final dos anos 70, meados de 80 (tenho a revista até hoje). Sempre me surpreendi de ninguém ter lido, ninguém ter se dado conta da pertinencia das colocações dele, das coisas que ele falou ali (por isto coloquei no livro). Esta coisa da recorrencia avassaladora do pensamento hegemonico é bem de assustar mesmo. Se ninguém falar, chamar a atenção…já era a propriedade e a lucidez.

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  3. Para que se enalteça a contribuição de um povo africano é realmente necessário a desqualificação de outros?

    Infelizmente ainda precisamos ter paciência com os nossos irmãos que deslumbrados com os argumentos de meia dúzia de acadêmicos, se enchem de uma idéia e se deixam contaminar por elas. Gente assim não pertence a lugar algum, nem é yorubá e nem mesmo é bantu e talvez nem mesmo pertença a academia ou terreiro algum, (o que naõ vem ao caso neste momento). Não sabem o que estão acusando e nem sequer o que estão defendendo, portanto fica muito difícil fazer crêr em coisas simples como o “modus operandi” do contexto religioso em voga! Acabam cegos, tateando uma coisa aqui e outra ali, ou coisa que se ouviu falar.
    Não defendo supremacia alguma, até mesmo porque não acredito nelas e se há alguma supremacia a ser combatida acredito que seja àquela a qual já estamos acostumados a combater.

    Para mim considero encerrado esse debate.

    Certamente não conseguiremos encontrar um ponto de equilíbrio entre o discurso e a prática. Nesse sentido gostaria de sugerir uma mudança do focu da sua tese, meu querido amigo Spirito Santo, Talvez não seja o caso de atacar os Yorùbá e sim meia dúzia de acadêmicos que insistem em aplicar um pensamento cartesiano de supremacia das raças, tentando diminuir os horrores de uma divisão geográfica do continente africano, imputando-lhes uma diferença meramente ideológica, atribuindo-lhes mais iou menos qualidades afim de reforçar a semelhança ou diferença que há entre elas e a cultura européia. Não se esqueça que o cosmologia africana e dialética e que tudo é imanente, sendo este o ingrediente fundamental de união dos diferentes povos trazidos para a diáspora em torno da reconstrução primordial da sua existência:

    1- A família (Benção a todas as parteiras, e primeiras mães e pais socias, irmãos e irmães de santo)

    2- A religião (Sem disputas regionais e sem sim-cretismos desnecessários cada uma dessas nações se consolidaram solidariamente)

    3- O trabalho (Benção às vendedoras de fato, mariscos, acarajé e abará, aos verdureiros encraxates sapáteiros, barbeiros pedreiros e marcineiros, meus respeirtos)

    4- A Educação como fator de superação do racismo e do preconceito. (Benção às vendedoras de tudo e zeladoras dos santos nesta caminhada do sonho eterno de ter “o filho doutor”).

    Quem vier a Bahia vai se deparar com uma inexorável “Supremacia Bantu”, todos os dias bem no meio das ruas e isso não nos incomoda. Se por um lado a nomenclatura das divindades do Camdomblé é Yorùbá quase todo o resto tem uma forte influência Bantu, e um pouco menos da influência dos Mulçumanos nor torços e bordados, por exemplo, até mesmo o nome Candomblé é de origem não yorubana. Sendo o romance com língua portuguesa mais intenso temos um léxico vasto proveniênte dos grupos étnicos que compõem o povo Bantu e até na literatura e política, apesar do isolmento linguístico da África e sua diáspora, temos muito mais influência de Agostinho Neto, Samora Marchel e Steve Bantu Biko, que qualquer outro nome oriundo do povo Yorùbá. Eu conheço pouquíssimos quilombos com traços yurubanos e também é notória a influência Bantu nas festas católicas como o São João e o Carnaval.
    Poderia elencar mais uma duzia de exemplos para justificar a minha posição contrária a qualquer supremacia, (como ja disse antes).
    Diante do tema exposto e dentro da proposta do grupo como um centro de estudo e pesquisa entendo que podemos contribuir de forma positiva para a reconstrução do conhecimento, mediados pelo bom censo e respeito aos outros membros, que muitas vezes por não se manifestar, nos causa até uma sensação de descaso ideológico, insistindo em um mesmo tópico como se quiséssemos chamar a atenção para os nossos atributos inteléctuais. Muito pelo contrário, recebo respostas muito positivas de quem vem acompanhando de perto esse bate papo. Fique tranquilo, fique em paz!!!

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  4. Caraca mestre… não tinha dimensão dessa habilidade hermenêutica do Verger… Passo agora a admirá-lo também como cientista.

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  5. Juana Elbein dos Santos – Antropóloga e coordenadora geral da Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil. Seu livro Os Nàgô E A Morte Pàde, Àsèsè e o Culto Égun na Bahia foi Tese de Doutorado em Etnologia na Universidade de Sorbonne em 1972, traduzido para o português pela Universidade Federal da Bahia.

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