Ultrassonografia da Mbira

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A Mbira das Almas
Mbira dza vadzimu
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Lamelofone é o nome dado a instrumentos musicais compostos por um conjunto de finas lâminas, geralmente metálicas (ou de bambu) tensionadas sobre alguma plataforma, geralmente de madeira e amplificadas por meio do contato com algum recipiente ressonador ou por meio de captadores de contato (microfones) eletrônicos.

Existem outros tipos de lamelofones com fisiologia um pouco diferente da descrita acima, um exemplo clássico é o idiofônico europeu “guimbarde” (uma lâmina de aço tensa num pequenino arco rígido) conhecido no Brasil também como “berimbau de boca”, um nome um tanto impróprio, pois o “berimbau” (“Hungo” em Angola) é, na verdade um arco musical.

São lamelofones também as gaitas de boca, as sanfonas, bandoneons e os acordeons em geral, Nesse caso as lâminas, de dimensões mínimas, oclusas num recipiente, são postas em vibração por meio do ar sob pressão, emitido por foles externos ou por nossos próprios pulmões.

Dito isso, podemos classificar a Mbira como um lamelofone manual clássico (“thumb piano” para os europeus), tocado com os polegares, geralmente, ou com a ajuda de um ou dois dedos indicadores, nos modelos mais sofisticados, entre os quais se destaca a Mbira. Importante ressaltar, que o nome Mbira não serve para denominar todos os lamelofones de seu tipo. Mbira denomina apenas e especialmente um lamelofone da cultura Shona, notadamente em sua localização no Zimbabwe, antiga Rodésia dos tempos coloniais.

Existem, portanto, na África, um sem número de lamelofones manuais, com outros nomes em línguas regionais e ligeiras variações fisiológicas. Entre esses encontramos o “Kissangi”, o “likembe” e o “mbuetete” angolanos, a “Kalimba”, também de origem Shona, mais ocorrente na África do Sul, além das “Sanzas” genéricas.

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O nome “Kalimba”, aliás (extraído do lamelofone tradicional “Karimba”, da mesma região), a partir dos anos 1990, tem servido para definir os lamelofones manuais no mundo inteiro, depois do sucesso obtido por um modelo semi industrializado produzido desde os anos 1970 por uma fábrica criada no gueto de Soweto, Johanesburg por Andrew Tracey, filho do grande etnomusicólogo Hugh Tracey (o mais destacado pesquisador de lamelofones africanos de todos os tempos).A primeira descrição de um lamelofone africano, foi feita, segundo a etnóloga alemã Margot Dias, pelo frei dominicando João dos Santos, em 1586

Foi Andrew quem registrou a marca “Kalimba”, rotulada em cada peça vendida mundo a fora, assim popularizando o nome, tornado genérico a partir daí.

O nome genérico mais correto para se definir todos os lamelofones africanos, contudo, talvez seja “Sanza”, extraído do nome de um dos muitos modelos de lamelofones da região sul da África. A primeira descrição de um lamelofone africano, foi feita, segundo a etnóloga alemã Margot Dias, por um português, Frei dominicando João dos Santos, em 1586

«… Outro instrumento músico tem estes cafres,… mas é todo de ferro, a que também chamam ambira, o qual em lugar dos cabaços tem umas vergas de ferro, espalmadas, e delgadas, de comprimento de um palmo, temperadas no fogo de tal maneira, que cada uma tem a sua voz diferente.

:Estas vergas são nove somente, e todas estão postas em carreira, e chegadas umas às outras, pregadas com as pontas em um pau, como em cavalete de viola, e d’ali se vão dobrando, sobre um vão que tem o rnesmo pau ao modo de uma escudela, sobre o qual ficam as outras pontas no ar.

Este, tangem os cafres, tocando-lhes n’estas pontas que tem no ar, com as unhas dos dedos polegares, que para isso trazem crescidas e compridas: e  tão ligeiramente as tocam, como faz um bom tangedor de tecla com um cravo.

De modo que sacudindo-se os ferros e dando as pancadas em vão sobre a boca da escudela ao modo de berim­bau, fazem todos juntos uma harmonia de branda e suave música de todas as vozes mui concertadas. Este instrumento é muito màis músico quando e o outro dos cabaços, mas não soa tanto e tange-se ordinariamente na casa onde está o rei porque é mais brando e faz mui pouco estrondo».

Tudo isto exposto, não podemos escapar da constatação definitiva, de que a Mbira Shona é o mais complexo tipo de Sanza de toda a África. Com alguma certeza, a julgar, exatamente por sua complexidade fisiológica, a Mbira talvez seja o mais antigo instrumento de sua espécie, ancestral direto do mais antigo lamelofone criado pelo homem, ressaltando-se que nunca se conseguiu registrar a existência de lamelofones manuais ou sanzas, fora da África.

A história oral do povo Shona, nos dá conta do uso comum da Mbira desde tempos muito antigos, remontando ao século 10. Esta época bate com o período das grandes migrações do norte para o sul do continente africano, que originaram o ramo etnolinguístico Bantu, contexto onde se insere o povo Shona e todos os povos da África central para baixo, um contexto cultural muito amplo e diverso que engloba desde os Ibo, povo do sul da Nigéria atual, os Bakongo do Sul do Congo e do norte de Angola, descendo até o extremo sul do continente com os Shosa da África so sul, passando, evidentemente pelos Shona, que também habitam mais para o leste do Zimbabwe, entrando por Moçambique a dentro.

É bastante provável que, ainda nos reportando à sua complexidade fisiológica e musical, a origem da Mbira se estenda para época bem mais remota, originária de algum povo em estágio tecnológico mais “avançado” que o dos caçadores-coletores da floresta do Mayombe, por exemplo, algum povo da idade do ferro, já que a fisiologia da Mbira exige expertise tecnológico como a fusão de ligas metálicas e a manipulação do metal em forjas.

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A hipótese mais provável que estamos sugerindo, indica a origem da Mbira ao contexto de uma civilização da área sudanesa mais à nordeste, Kemet (Egito), algo assim, muitos mil anos antes de nós, tendo o complexo know how necessário à criação do instrumento evoluído com o tempo, e migrado junto com os povos que desceram para o sul da África, se instalando na região do Zimbabwe, de onde o instrumento teria se espalhado pelo continente.

As grandes ruínas de muralhas existentes no Zimbabwe, com efeito, são testemunhas candentes de que em época imemorial, um povo em estágio tecnológico avançado, se instalou ali, vindo não se sabe ainda de onde, sendo lícito se admitir que veio do norte.

A Mbira é, pois, mais do que um instrumento musical, um documento arqueológico cheio de informações sobre a história do sul africano. Nada como um tempo após o outro.

O Papel da Mbira na Cultura Shona

A Mbira (nome tanto do instrumento quanto a música) é tocada há mais de mil anos em algumas tribos do povo Shona, como vimos, um grupo que constitui a grande maioria da população do Zimbabwe, estendendo-se até Moçambique.

A Mbira permeia todos os aspectos da cultura Shona, tanto sagrados quanto profanos. Sua função mais importante é a de ser uma espécie de aparelho de comunicação com os espíritos. A Mbira é usada para entrar em contato tanto com os antepassados falecidos, quanto com os responsáveis tribais, em todas as noites cerimoniais (Mapira).

A Mbira é, pois, um instrumento de comunicação direta com os espíritos (“vadzimu“), a saber espíritos familiares (“midzimu“), espíritos do clã (“Mhondoro“) ou chefes falecidos com espíritos poderosos (“makombwe“). Nessa relação comunicativa dos humanos com os espíritos, os Shona obtêm orientações sobre assuntos de família, comunitários e maneiras de lidar com noções físicas, concretas, como o tempo e a saúde.

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A Mbira é necessária para trazer chuva durante a seca, para que a chuva pare durante as inundações, para trazer nuvens quando as culturas estão queimados pelo sol. A Mbira é usada também para afugentar espíritos nocivos e para curar doenças com ou sem um n’ganga (médico tradicional, adivinho). A Mbira está incluída em celebrações de todos os tipos, incluindo casamentos, a posse de novos chefes, e, mais recentemente, até eventos do governo, como o Dia da Independência e as conferências internacionais.

A Mbira também é necessária em cerimônias de morte, e é tocada por uma semana após a morte de um chefe antes que a comunidade seja informada de seu falecimento. Na cerimônia Guva, aproximadamente um ano após a morte física de uma pessoa, a Mbira é usada para acolher o espírito do indivíduo de volta à comunidade.

Em séculos anteriores, músicos da corte tocavam a Mbira para reis Shona e seus adivinhos. Embora o Mbira tenha sido, originalmente usada em um número limitado de áreas Shona, hoje ela é popular em todo o país.

A Mbira é muito admirada pelas as qualidades gerais que pode oferecer, tais como: mente calma e força diante das agruras da vida. A Mbira Shona também está, rapidamente se tornando conhecida em todo o mundo, devido a excursões de músicos tradicionais e bandas de Mbiras elétricas zimbabuenses que incluem o instrumento em suas performances.

Durante o período colonial no Zimbabwe (quando o país era conhecido como Rodésia), os missionários espalharam a crença de que mbira era do mau, devido à sua associação com espíritos ancestrais e daí a popularidade da Mbira no Zimbabwe diminuiu.

Desde a independência em 1980, contudo, a Mbira tem desfrutado de um grande ressurgimento de sua popularidade, e agora é considerada o instrumento nacional do Zimbabwe. Os músicos tradicionais lembram às suas comunidades que a Mbira é tocada para incentivar os espíritos a protegem a terra e o povo. Nem a Mbira, nem os espíritos devem ser negligenciadis se os zimbabuanos desejam desfrutar de saúde e tranquilidade.

A Mbira: O instrumento em si e sua fisiologia.

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O tipo de Mbira mostrado na maioria dessas fotos, característico do povo Shona, consiste em geral em 22 a 28 lâminas de metal (existem Mbiras com até 56 lâminas) montado sobre uma “gwariva” (prancha de madeira de lei) extraída da árvore mubvamaropa (Pterocarpus angolensis). Embora as lâminas de metal fossem originalmente fundidas, diretamente de pedras de minério de ferro, agora elas podem ser feitas de molas de sofás, raios de bicicleta, molas do assento de automóvel, e outros materiais de aço reciclados ou novos.

(Importante se observar que as lâminas das Mbiras clássicas ou mais tradicionais, são feitas ainda com as pontas das lâminas achatadas na forja e retemperadas, a partir de finos vergalhões quadrangulares (cerca de 2 mm de lado) de ferro ou aço de baixa têmpera. A baixa têmpera do material exige lâminas com mais espessura, afim de poderem resistir à tração exigida para que as pontas das lâminas vibrem.

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Esta característica fisiológica torna os instrumentos tradicionais mais pesados, mais duros de tocar e com o volume mais tênue. Nos dias de hoje já se pode encontrar Mbiras com lâminas mais finas, de aço rápido de alta têmpera, notando-se que nesses casos há uma ligeira perda de harmônicos agudos, que dão um timbre cristalino às Mbiras tradicionais.

A Mbira é, geralmente colocada dentro de um grande ressonador de cabaça (denominado “Deze“). O mutsigo (um pino ou ponta de madeira) é utilizado para fixar a Mbira em segurança dentro do deze. A Mbira tradicional é tocada com os polegares nas notas médias e graves, flexionando-as para baixo e com o indicador da mão direita, nas notas mais agudas, flexionando as lâminas de baixo para cima.

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Anéis de metal são inseridos num fio de arame fixado numa placa de metal, presa na extremidade inferior do tampo da Mbira. Os anéis vibram em simpatia com a vibração das notas, acrescentando um zumbido, um efeito timbrístico ao instrumento, semelhante a um silvo cintilante e macio.

Tampas de garrafas ou conchas também são montadas no Deze (ressonador) para aumentar o o zumbido, que é considerado, como vimos, uma parte essencial do timbre da Mbira, necessário para limpar a mente de maus pensamentos e preocupações, para que a música Mbira possa preencher a consciência dos artistas e dos ouvintes.

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O zumbido acrescenta também profundidade e contexto para os tons claros das lâminas da Mbira, e podem ser ouvidos como vozes sussurrantes, cantando, batendo, como o vento ou a chuva. O zumbido também aumenta o volume da Mbira.

Muitas afinações ou “modos” diferentes de Mbira são utilizadas, de acordo com a preferência pessoal de cada músico. A única exigência é que, tradicionalmente, dois instrumentos tocados juntos estejam afinados em sintonia (no mesmo tom). Se uma mesma sequência de teclas é reproduzida, a música é considerada como sendo a mesma peça Mbira, mesmo que se toque em instrumentos com a ordem dos intervalos completamente diferente.

A Mbira tem qualidades muito superiores às Sanzas mais conhecidas. A principal dessas qualidades é a maior extensão da escala (três ou até quatro gamas) com um bom ganho em graves, por conta do excelente recurso da camada extra de baixos em oitavas (um degrau abaixo dos médios) principal diferença fisiológica diante das sanzas mais comuns, cuja escala é sempre linear, além das Mbiras oferecerem, por esta mesma razão, a possibilidade de se produzir acordes mais ricos, com até quatro notas.

As sete afinações da Mbira

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As escalas de Mbiras podem variar não só na ordem relativa dos intervalos, mas também na sua altura absoluta (a gama ou registro do instrumento). Tocadores de Mbira muitas vezes utilizam termos específicos em Shona para descrever quão alto ou baixo o instrumento soa, e seu timbre, bem como o ajuste de cada escala.

Vários autores têm tentado relacionar algumas afinações Mbira comuns com escalas ocidentais geralmente as escalas de Mbira, contudo, são modais, podendo ser relacionadas, rigor com as tabelas de modos gregos (mixolídio, lídio, frígio, dórico, etc.), geralmente numa estrutura pentatônica por meio da omissão do quarto e do sétimo grau. Contudo, definir de maneira rígida as escalas de Mbira é um trabalho, de certo modo inútil, pois, os fabricantes e os músicos costumam “envenenar”, desconstruir padrões recorrentes, de modo a trabalharem com escalas muito particulares, quase individuais.

O conceito de repertório também é bem diferente do utilizado pela música ocidental, no qual um número composto por um indivíduo, precisa ser reproduzido o mais exatamente possível igual ao tema original, enquanto que na música de Mbira (e na música instrumental africana como um todo) vale muito mais a habilidade do músico em tocar o tema com variações pessoais inesperadas, obedecendo rigidamente apenas ao ritmo, a escala repetindo apenas uma outra célula melódica mais marcante, mais ou menos como um músico de jazz.

Dentro desses critérios e variações, são sete as escalas de Mbira do Zimbabwe mais conhecidas (confira os padrões dessas escalas nos links abaixo)

Nyamaropa
Gandanga
Nemakonde
Dambatsoko
Katsanzaira
Dongonda
Saumgweme

A afinação mais comum é a Nyamaropa, geralmente descrita como uma escala maior com o sétimo grau da escala na diminuta (sétima anulada ou rebaixada em meio tom), o equivalente ao modo Mixolídio ocidental (a escala que este autor usa, em sua sanza de 15 lâminas, em dois modos a saber:“Mixolídio” e “Eólio”, este, na verdade pensado como um modo misto, como se fosse um “Mixolídio menor”, com a terça rebaixada)

A extensão ou gama da escala de uma mbira é também uma questão de preferência pessoal, variando do médio-agudo ao baixo mais profundo. Cada instrumento costuma ter uma gama total de três oitavas, ou mais, como no caso das referidas Mbiras de 56 lâminas.

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E assim temos, devidamente escaneada, ultrassonografada a nossa sensacional Mbira, um instrumento dos espíritos, quiçá um dos primeiros a ensejar no ser humano o controle dos sensos atávicos do timbre, da harmonia, nossa alma no sentido, ao mesmo tempo, mais concreto e mais abstrato, quântico.

Mbira das almas.

(Veja abaixo os links sensacionais dos autores usados  – em muitas partes traduzidos – na pesquisa desse artigo. Num desses links você encontrará diversos sons de Mbira)

http://mbira.org/musicians.html
http://mbira.org/makersatwork.html
http://mbira.org/tuning.html
http://www.nscottrobinson.com/mbiratunings.php

(Com agradecimentos à Sonya Prazeres, dona do instrumento ultrassografado)

Spirito Santo
Maio 2016

Uma resposta em “Ultrassonografia da Mbira

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