Ras George, the warrior, glória de Jah.



(Desculpem, mas meu São Jorge – que nem era tão santo assim – é este outro.)

“Esta pintura mostra uma cena da batalha de Adwa, travada entre a Etiópia e a Itália, em 02 de março de 1896. Está no Museu Britânico, há diversas pinturas etíopes retratando essa vitória onde as tropas italianas foram completamente derrotadas pelos soldados etíopes. Um marco da resistência africana. 

Com a decisão das potências europeias na Conferência de Berlim realizada entre Novembro de 1884 e fevereiro de 1885, com objetivo organizar, na forma de regras, a ocupação de África pelas potências coloniais e resultou numa divisão que não respeitou, nem a história, nem as relações étnicas e mesmo familiares dos povos do continente africano. 

Mostra o imperador Menelik II liderando os exércitos etíopes a vitória sobre uma grande força italiano colonial. O Imperador é mostrado no canto superior esquerdo da pintura, usando uma coroa real, sentado debaixo de um guarda-chuva real. Sua esposa Imperatriz Taytu é mostrada no canto inferior esquerdo a cavalo carregando um revólver, bem no meio da batalha, e exortando as tropas etíopes para a vitória. No centro da pintura, em um cavalo marrom, é o comandante das forças etíopes, Fitawrari Gabayyahu. 

Acima de cena da batalha de São Jorge, o santo padroeiro da Etiópia, é mostrado em um halo de vermelho, amarelo e verde. Ele está intimamente associado com a família imperial e suas forças militares e é visto aqui ajudando os etíopes para a vitória. Três de suas lanceiros caíram nas linhas italianas e um general italiano é visto fugindo a cavalo.”

Você já parou para pensar por que São Jorge (aquele cara vestido de soldado antigo que mata o dragão) é chamado de…”Santo Guerreiro”? E porque será que o evocamos nas horas perigosas pedindo a “força e…as armas” de Jorge”)

Para mim nunca bateu bem esta história. Santo Guerreiro? Como assim para um cara católico que só mata um dragão? E esta coisa de Ogum ser São Jorge também…hum…Só por que os dois foram guerreiros?

Um centurião branco católico apostólico romano, junto e misturado com o outro, um afro-semi deus mitológico? Nada a ver um com o outro, nada muito convincente, a não ser para quem é devoto cego de pés juntos do que algum sinhô doutor xamã mandou.

Não será porque, sei lá, o São Jorge real (o sentido de seu mito para o povo) na verdade é outro?

E vejam bem…mesmo sendo dito antes um suposto soldado branco, católico, apostólico romano, este outro Jorge, o popular, ao fim de todas as contas, depois de comandar as tropas etíopes que derrotaram, fragarosamente as tropas italianas, devia ser, a vera mesmo, um negro africano, comandante símbólico de uma guerra de libertação nacional, anti colonialista vitoriosa, ainda no século 19.

A Europa de joelhos como num remoto Vietnam o foi pela força e pelas armas de Jorge.

O Dragão no qual devíamos crer, portanto – como numa charge sutil- em seu sentido real, no “mito” verdadeiro (porque histórico), na verdade não seria o monstro colonialista torpe e covarde, começando a ser derrotado ali, humilhado pelas orgulhosas tropas de Menelik II na batalha de Adwa em março de 1896?

Se liguem: O São Jorge, o da capa vermelha para mim era (e é ), na real, o prenúncio da independência – pelo menos física – da África, seu primeiro grito de libertação:

“A luta continua! A vitória é certa!”

Spirito Santo

23/04/2024 (Repost)


Leia e veja estes links e entenda o espírito da coisa:

http://zambukaki.blogspot.com.br/2013/05/a-batalha-de-adwa-vitoria-etiope-sobre.html
https://ocaravanserai.wordpress.com/2013/09/13/a-batalha-de-adwa-etiopia-resiste-ao-colonialismo-europeu/
https://m.youtube.com/watch?v=USTxogfohLc
https://m.youtube.com/watch?v=id_3pzPjTd0
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Improbidade intelectual e “estudos do negro” no Brasil


Capa de texto teatral sobre a Rebelião de Manoel Kongo no Vale do Café, RJ

Cortesias com chapéu alheio e outros caôs.

“…Era ferreiro, ofício que requer treinamento e habilidade, o que certamente lhe dava status superior entre os outros escravos e maior valor econômico perante os senhores. A sociedade da época tinha grande carência de ferreiros e marceneiros, tanto que, em 1832, foi criada em Vassouras a “Sociedade Promotora da Civilização e da Indústria” que, entre outras coisas, treinava os escravos considerados mais hábeis e inteligentes no ofício de ferreiro. Coincidentementemente, na cultura dos Kimbundos, grupo étnico angolano que contribuiu com muitos escravos para a região, o ofício de ferreiro era uma ocupação exclusiva de reis e nobres.”

———————

Acho incrível essas coisas. O trecho acima, extraído do verbete “Manoel Congo” da Wikipédia repete muito claramente conclusões a que eu, Spirito Santo, cheguei em pesquisas entre 1994/1997 sobre as entrelinhas da rebelião de escravos comandada, entre outros pelo escravo africano acima citado.

Minhas conclusões até então, presumo, inéditas, se basearam no cruzamento de informações e pistas esparsas, contidas em várias fontes bibliográficas e orais, inclusive uma cuidadosa consulta à fontes estrangeiras, principalmente angolanas, portuguesas e inglesas ou norte americanas.

Todo esse material foi utilizado em 1994/96 para a criação de um texto teatral denominado “Auto de Manoel Kongo”, de minha autoria, objeto de várias tentativas de produção junto à algumas instituições culturais públicas do Rio de Janeiro, entre as quais a Secretaria de Cultura de Vassouras.

Posteriormente, por ocasião da edição e publicação, em duas edições do meu livro “Do Samba ao Funk do Jorjão” inseri no texto geral, parte dessa pesquisa, dando a ela foros de referência formal, para estudiosos em geral.

Qual não foi minha surpresa quando mais uma vez percebo que, embora sendo, muito provavelmente o formulador da maioria das conclusões acima referidas sobre o tema, nunca ter tido este mérito reconhecido em bibliografias de artigos como este.

É bastante evidente que os estudiosos, autores desses verbetes ou artigos citando este aspecto do tema, leram o material que produzi, mas omitiram a fonte, não raro se apropriando do conteúdo ou mesmo sugerindo a atribuição a outros autores mais célebres, canonizados.

Claro que é com muita satisfação que vejo estas minhas alegadas conclusões sendo, gradualmente corroboradas no meio de estudiosos, academicos ou não, mas é bastante questionável a omissão ou a supressão deliberada do crédito tantas vezes, subrepticiamente apropriado por estudiosos improbos, de ética duvidosa e isso é inaceitável.

Entre outros, este é um aspecto, moralmente constrangedor de nossas Ciências Sociais. É enorme o trabalho que dá denunciar esse tipo de apropriação sorrateira da produção cultural alheia, da propriedade intelectual de quem atua fora da redoma de cristal da academia, com esforço e rigor científico legítimos, embora de modo independente. É deplorável!

Em links no primeiro comentário abaixo, disponibilizo os artigos e textos de minha autoria aos quais me refiro, com as datas referentes à sua publicação, ressalvando que em todos os casos, as publicações estão credenciadas por licenças de proteção de direitos autorais idôneas.

Com o perdão pela franqueza,

Spirito Santo
Quarentena de Abril de 2020

TEXTO COMPLETO DA PEÇA AQUI: https://drive.google.com/open?id=0B9XwWRySt8xoWHV3M1FLOU5fUVk

O Misterioso escravo dandi do Vale do Café


Minha instigação principal nesse apreço compulsivo  pela iconologia, essa metodologia santomeista do “Ver pra Crer”, é sempre o prazer pelo inusitado, o detalhe fortuito descoberto assim, simplesmente pelo ato de, curioso perdigueiro, achar uma minúcia ínfima que pode, de repente, mudar tudo sobre o que sabíamos sobre algo, sobre todo o resto desse algo.

Outra constatação – esta nem um pouco prazerosa, apesar de surpreendente e até agora inexplicável para mim – é o fato de NINGUÉM ousar acreditar, ou mesmo admitir publicamente que viu, certos aspectos, digamos…inconvenientes ao lugar comum, que desmontam ou mesmo desmoralizam supostas verdades estabelecidas. 

Foto Marc Ferrez 1885- Vale do Paraiba do Sul, RJ

 Conformismo! O negacionismo é um comportamento execrável, inaceitável para mim.

A Maria, rainha portuguesa, a primeira, aquela que “ ia com as outras”, lembrem-se, não era conformista…ela era LOUCA!

Esse pânico covarde das pessoas ao se verem diante de alguma falácia ou mentira, cabalmente desmascarada por alguma evidência, com o poder de implodir um lugar comum arraigado na sociedade, para mim é a coisa mais constrangedora e decepcionante da vida numa sociedade. 

Nos casos em que, ao observar uma imagem me interessa criar perfis humanizados de indivíduos escravizados, a partir de sua linguagem corporal, expressões faciais ou emocionais, etc, diante do constrangimento da exposição forçada à lente de fotógrafos contratados por senhores, que sequestram suas imagens sem nenhum pudor ou respeito, me instigam muito descobrir esses detalhes-tabu. 

Adoro revela-los.

A imagem a seguir por exemplo, um corte de uma foto (mostrada acima) de  um grupo de escravos feita por Marc Ferrez em 1885 numa fazenda de café no Vale do Paraįba do Sul, RJ é um exemplo candente:

Foto (corte) Marc Ferrez 1885- Vale do Paraiba do Sul, RJ

Na foto, muito intrigado destaco a figura deste escravo jovem, com um perfil e uma atitude pra lá de insólita para o momento do flash.

Ele veste uma roupa extremamente bem talhada, chic mesmo, aparentemente  limpa demais para a cena, impecável, em grande contraste com as roupas imundas e  andrajosas dos demais cativos. 

Como explicar isso?

O detalhe mais surpreendente de seu vestuário, contudo, é o uso de um  chapéu, tipicamente europeu, um modelo que só foi popularizado na Europa no final do século XIX, início do XX, justamente na época da foto de Ferrez.

Homem com chapéu “velejador”, 1857. Musee Marmottan Monet, Paris, France / bridgemanimages.

Trata-se de um “Boat Hat”/“Chapéu de Velejador” retratado por Monet em 1857 que só se populariza mesmo no Brasil em 1910/20 (veja imagem).

Esta peça do vestuário deste escravo, certamente muito cara na ocasião, me instigou,fortemente várias outras perguntas: 

Como poderia, por exemplo, um escravo comum possuir uma peça dessas estando isolado, aprisionado numa fazenda de café nos cafundós da província do Rio de Janeiro em 1885?

Ganhou a peça de alguém? Quem teria importado a peça da Europa e dado ao escravo tão valioso objeto? 

Sua postura diante da câmera de Ferrez – na verdade uma clara pose estudada para a foto e cheia de arrogância- também é  de se estranhar, mais inexplicável, ainda ainda  porque não há nenhum traço de obediência ou submissão em sua figura, bem segura de si no flagrante.

Porque, será que, num ambiente täo violento e opressivo, lhe foi concedido o direito de usar esse chapéu e essa roupa assim, ostensivamente, como se fosse um jovem e rico dandi europeu? 

Tenho cá meus palpites, muito vagos ainda, confesso, mas não me sinto ainda seguro para os revelar.

Com a palavra os curiosos – desde que insubordinados – investigadores de plantão.

Spirito Santo 

Abril 2024

Samora Machel na Selva da Guerra


Fotos Propaganda FRELIMO, Moçambique, 1969

Iconologia e História por um Out Sider


(Notas metodológicas do Ver para Crer sugerem ferramenta para estudo etnológico e etcétera)

Obtive essa imagem de um amigo comunista, que participara da organização de uma exposição no início dos anos 1970, na Câmara dos Vereadores do Rio, no início da minha prática de pesquisador “bicho carpinteiro”. A exposição era em apoio à luta (por fim vitoriosa) dos moçambicanos contra os colonialistas portugueses.

Uma foto histórica, absolutamente rara.

A foto (com um carimbo a autenticando) é de 25 de Agosto de 1969, início da expansão guerrilheira em África e pertencia a Frente de Libertação Nacional, FRELIMO, num modesto, porém muito bem organizado programa de propaganda e busca de apoio à luta armada na região.

O que vemos: Samora Machel, líder da Frelimo, opera ainda com poucos recursos na selva do país. Seu uniforme é surrado e, provavelmente formado por peças usadas, de diferentes procedências. Seu boné, provavelmente foi de algum soldado chinês, sua “bota”, é um sapato comum, bem gasto que talvez nem tenha sido sempre seu.

Está armado apenas com uma pistola comum, pelo formato do coldre de tipo alemão, Mauser ou Luger (“parabelum”).

Na imagem Samora, aparentemente faz uma preleção para o que imagino ser um grupo de soldados portugueses muito jovens, recentemente capturados. Os soldados, reparem, tiveram as botas apreendidas e calçam tênis gastos que, provavelmente eram calçados pelo grupo de (talvez) guerrilheiros que observa a cena.

Há um organizado trabalho de propaganda por trás da imagem, revelado pelo caráter e qualidade profissional da foto e pelo pequeno microfone de um gravador K7 que capta o discurso do líder.

Dois aspectos sutis não nos escapam nessa análise da imagem: a evidente atenção – ou mesmo simpatia – que os jovens soldados portugueses demonstram ter pelo que Samora está lhes dizendo e – que curioso! – a questionável branquitude dos jovens, alguns com traços de evidente origem mediterrânea, denunciando sua ascendência mourisca que, certamente representa as mui íntimas relações ancestrais dos portugueses com os negros mouros do Sudão, orgulhosos dominadores durante séculos da península Ibérica (e de boa parte da Europa ) conspurcadores que foram da suposta e arrogante “pureza racial” dos invasores da África.

Nada como ver para crer que a Vitória é Certa.

Spirito Santo
Quarentena de Março de 2020

A saga de Manoel Kongo forever


A partir de 1996, há pouco tempo chegado da experiência europeia, consegui emprego na Secretaria Extraordinária de Educação do governo do Rio (Leonel Brizola) num belo programa de arte educação (Animação Cultural) criado e comandado pelos saudosos antropólogo Darcy Ribeiro e a musicóloga Cecília Conde.

Convidado pelo, não menos saudoso amigo Caíque Botkay. Eu coordenava uma área do programa em 13 municípios do Vale do Paraíba do Sul, o Yale do Café, com uma equipe de 26 animadores culturais, dois por CIEP em cada município,

Foi o exercício intenso desta função que me permitiu fazer um ampla pesquisa de campo na região.

A mais importante ação desse período foi a consulta-tarefa que sugeri ao grupo de animadores para descobrirmos o fato histórico ou cultural mais importante – ou impactante – da região que eu pretendia que se tornasse o eixo do programa de intervenção na cultura local.

Ganhou disparado o evento histórico denominado “Quilombo de Manoel Kongo”, que me fez decidir com o grupo tentar produzir um Auto Teatral que escrevi neste ensejo, a ser encenado nas ruas das cidades históricas dali (a partir de Vassouras) utilizando como argumento, quase que inteiramente, a cópia dos autos originais do processo da antiga Comarca de Vassouras, que condenou vários escravos à penas diversas e Manoel Kongo, o suposto líder à morte na forca.

As contradições e entrelinhas desses autos, me induziram a pesquisar outras fontes, construindo uma versão do acontecido muito diferente da que consta na história oficial.

O espetáculo quase foi montado em algumas tentativas, encontrando sempre problemas e impedimentos diversos, entre os quais um dos mais importantes, foi o fato de muitas das autoridades do poder local serem, ainda nesta ocasião, membros das antigas famílias escravistas da época da insurreição, e que, presumo, discretamente nunca tiveram o menor interesse em ver a impressionante história real da região revelada.

Optaram sempre nos eventos culturais promovidos nas cidades da região por encenações teatrais amadoras que ressaltam, de algum modo, a opulência barroca dos “barões do café” omitindo, criteriosamente menções à natureza cruel e profunda, da exploração escravista, origem evidente da opulência, hoje decadente, dos poderosos locais.

(Não sabem – ironizemos – que a verdade liberta.)

É a escravidão eternizada. Mas o fato é que jamais desisti de encenar o “Auto do Manoel Kongo”. Trata-se, modéstia à parte, de um excelente projeto de turismo cultural para a região, talvez a única opção econômica que sobrou para as cidades do Vale, com a decadência do café no século 19.

A seguir, o texto da resenha que escrevi na época para subsidiar o projeto:

———————

A Revolta escrava de Manoel Kongo e sua Seita Antoniana
Uma história ainda mal contada de uma das maiores rebeliões escravas do Brasil.

A História

Com o esgotamento do ouro nas Minas Gerais, a economia brasileira se deslocou para o Vale do Paraíba do Sul, no Rio de Janeiro. O posterior esplendor da região, com seu eixo localizado na Vila de Paty do Alferes e, logo em seguida, na Vila de Vassouras, alavancou o desenvolvimento do Brasil por quase todo o século 19.

O signo principal deste ciclo de desenvolvimento era o café, mercadoria com enorme importância no mercado internacional do período, do qual o Brasil foi, durante muito tempo, o maior produtor.

O Brasil e sua economia dependiam, no entanto, de outra mercadoria, ainda mais essencial do que o café; A força de trabalho do escravo africano.

Ambos negros, escravo e café processado, fizeram algumas das maiores fortunas do mundo da época, fortunas estas que, concentradas quase todas na região do Vale do Paraíba do Sul, geraram a sociedade dos chamados ‘barões do café’, nababesca e prepotente, assentada numa estrutura social sem povo, composta, basicamente, por aristocratas e escravos.

Sequestrados de Angola, Congo, Moçambique e trazidos a partir, principalmente, dos portos próximos a Luanda e Benguela, para serem vendidos no Mercado do Valongo, próximo ao porto do Rio de Janeiro, os africanos que, depois de longa jornada a pé, chegavam à plantações de café do Vale do Paraíba, acabaram se tornando, não só um elemento essencial para a economia local mas também, como se pôde concluir mais tarde, num elemento capaz de ameaçar a própria segurança física daquela sociedade.

A Trama

Em 6 de novembro de 1838, o africano Camilo Sapateiro, escravo da fazenda Freguesia foi morto a tiros, quando se dirigia, clandestinamente, à fazenda Maravilha, ambas pertencentes ao maior proprietário de escravos e principal autoridade da comarca: o Capitão-Mor Manoel Francisco Xavier. O assassino, um capataz da fazenda, quase foi linchado pelos escravos.

O que pretendia fazer Camilo Sapateiro na fazenda vizinha quando foi morto? Teria sido a sua morte, pelo capataz (um incidente algo corriqueiro na rotina escravista), a verdadeira razão da insurreição de escravos de tão grandes proporções, que se seguiu?

De roldão, os escravos rebelados, divididos em dois grupos, saquearam as duas fazendas do Capitão-Mor e fugiram para a mata próxima. Num ponto, ao que tudo indica, previamente combinando, um dos grupos se encontrou com um número indeterminado de escravos de outras fazendas, além das duas de propriedade do Capitão-Mor.

A imediata adesão de escravos de outras fazendas chama, fortemente, a atenção para a possibilidade de ter havido algum tipo de articulação prévia entre os rebelados.

O fato é que, um grande grupo se embrenha na mata de Santa Catarina rumo a alto da Serra da Estrela, montando um arranchamento para pernoite, á cada fim de tarde do trajeto da fuga.

Perseguida por tropas da Guarda Nacional e homens recrutados pelo juiz de paz da comarca, uma parte deste grupo é atacada e dominada, quando ainda dormia, no quarto dia de fuga. Tropas do Exército Imperial, convocadas às pressas, comandadas pelo então Capitão Luiz Alves de Lima e Silva, futuro Duque de Caxias, só chegam na área do conflito quando tudo já havia terminado.

No grupo de escravos derrotados, está o suposto chefe da insurreição, denominado ‘Rei’, Manoel Congo, ferreiro da Fazenda Maravilha e uma mulher, denominada ‘Rainha’, a costureira Marianna Crioula, escrava de confiança da senhora dos escravos das fazendas Maravilha e Freguesia, Dona Elisa Xavier.

A um escravo morto na refrega, mas, não identificado nos autos, é atribuída a função de ‘Vice-rei’ da insurreição e do futuro suposto quilombo. Este escravo pode ser identificado, nas entrelinhas dos autos, como sendo o africano de nação Munhambane (moçambicano) Epifânio Moçambique.

Um número indeterminado de negros do grupo atacado consegue se embrenhar na mata, serra acima e dele não se tem mais notícias. Não se tem notícias também do segundo grupo, comandado por um escravo chamado João Angola que, embora não estando presente no ponto de encontro com o ‘Rei’, nem constando no rol dos presos no momento do ataque, foi visto no dia anterior prestes a assaltar a fábrica de pólvora da região, desaparecendo por outro caminho, rumo á Serra do Couto, próxima à Serra a Estrela, aparentemente, o destino final de todos os rebelados.

Pode-se, por estas evidências, entre outras surgidas na pesquisa, supor que os relatos que dão conta da existência de um quilombo na região, jamais desbaratado, são factíveis.

A despeito destas evidências, a maioria dos proprietários alegou que seus escravos retornaram, espontaneamente, à suas fazendas, mas, não existem registros seguros dando conta de quantos, efetivamente, fugiram e retornaram. A alegação livrava os fazendeiros das pesadas custas processuais, caso tivessem negros de sua propriedade (e responsabilidade) arrolados como rebeldes.

O peso total destas custas processuais acabou recaindo todo sobre o Capitão-Mor Manoel Francisco Xavier, que, depois dos escravos presos e condenados, passa a ser a principal vítima dos incidentes.

De um total de cerca de trezentos escravos fugidos e rebelados, apenas vinte e três (todos pertencentes a Manoel Francisco Xavier) são aprisionados (sete haviam sido mortos na refrega). Destes vinte e três presos, sete são mulheres (é significativo, do ponto de vista logístico, o fato deste grupo de presos, a maioria feridos na refrega, ser aquele onde estavam a maioria das mulheres e, provavelmente, os homens mais velhos e as crianças).

Cerca de dezesseis presos deste grupo são, efetivamente, julgados. A maioria é condenada, com uma única exceção: o escravo Adão Benguela que, apesar de estar tão envolvido quanto todos os outros nos conflitos, é estranhamente absolvido.

O suposto ‘Rei’ Manoel Congo’, é condenado à forca e executado em 1839 em Vassouras.

Os Antecedentes

A observação acurada – e crítica – de fatos descritos em documentos da época, principalmente os autos do processo montado na ocasião, contendo os depoimentos dos escravos presos, pequenos indícios ou omissões aparentemente deliberadas, contradições entre os depoimentos, etc., formam a base principal utilizada para a elaboração deste texto teatral.

Formam também a base de dados da pesquisa, textos esparsos, de outras fontes e um raro e inestimável relato, ao vivo, extraído pelo autor de uma entrevista por ele realizada em 1973, com uma ex-escrava de uma das fazendas da região, que ali viveu, alguns anos após os incidentes descritos pelos autos.

Com efeito, coisas muito inusitadas ocorriam naquela região nesta época de grande efervescência social.

Segundo dados descritos na crônica da cidade de Vassouras, escrita por Ignacio Raposo, um ano antes da fundação da vila, ocorrida em 1833, um grupo de proprietários criava a Sociedade Promotora da Civilização e da Indústria, de verniz positivista, e dedicada, entre outras coisas, à formação de artífices escravos, como mão de obra especializada, com o fim de possibilitar a manutenção de equipamentos, até então, feita por engenheiros vindos da Inglaterra e até – suprema ousadia – iniciar talvez a própria substituição da importação de máquinas e ferramentas agrícolas que, oriundas da Europa, obviamente com a mão de obra dos escravos-operários especializados, formados pela SCPI, passariam a ser fabricadas por aqui mesmo.

Ferreiros e marceneiros eram as principais especialidades indispensáveis à incrível proposta desenvolvimentista da SCPI. Os artífices a serem treinados, seriam recrutados, por seus proprietários, entre os seus escravos mais hábeis e inteligentes.

A mais incrível das coincidências era que o ofício de ferreiro foi, ainda nesta época, a partir de uma tradição africana que remonta o século 10 (segundo alguns relatos, talvez até um pouco antes disto), uma ocupação exclusiva de reis e nobres, um status de poder hierárquico superior na cultura dos Kimbundo e Ovimbundo, grupos étnicos angolanos que, em grande maioria, contribuíram com escravos para as plantações de café do Vale do Paraíba do Sul.

Sabe-se pelas mesmas fontes (Ignacio Raposo) que, um ano depois (por volta de 1834), uma curiosa sociedade secreta, composta por negros escravos e libertos, com uma elaborada estrutura, havia surgido em Vassouras, quatro anos, portanto, antes da insurreição de Manoel Congo. Esta ‘insidiosa’ organização, segundo foi descrito por esta mesma crônica da Cidade de vassouras, andava ruminando um levante que pretendia libertar todos os escravos da área.

Somente nove anos depois, ou seja, em 1847, a tal organização secreta pode ser desbaratada. Os registros policiais da ocasião, afirmaram que ela se autodenominava Elbanda, Embanda, mais propriamente talvez, por ser a expressão traduzida como “xamanismo” ou ” curanderismo” a qual, quando acrescida do prefixo “Ki” – Kimbanda – significa o mesmo que “Médico” no idioma de origem, o kimbundo, podendo se traduzir Embanda como “medicina” nesse contexto de seita ou sociedade secreta, nesse caso formada por núcleos ou células clandestinas, dirigidas, obrigatoriamente, por escravos ferreiros e marceneiros, chamados pelos outros escravos de ‘Tata” (ou ‘pai’ ) Korongo.

Também, curiosamente, pesquisas bem recentes sobre a cultura dos Kimbundo e Mbundo, nos dão conta que era por demais comum na sociedade angolana do século 19, a proliferação de seitas e sociedades secretas, por diversas motivações, prática que pode ter sido seguida pelos escravos de Vassouras.

A seita em questão, devotada à Santo Antônio, evocava, fortemente possível inspiração na remota seita existente no Reino do Kongo na virada do século 17 para o 18, criada e liderada por uma jovem sacerdotisa chamada Kimpa Nvita (ou Vita), morta em 1702 numa fogueira da Inquisição. Importante frisar que a seita de Kimpa Nvita pregava uma guerra de libertação do reino do Kongo contra os colonialistas portugueses.

Esta emocionante reconstituição nos dá conta, enfim, de uma malha de estranhas relações, interesses e contradições, bastante incomuns na história oficial do escravismo brasileiro, estabelecidas entre proprietários e escravos, escravos entre si, além de proprietários, do mesmo modo entre si. Um impressionante conflito humano sacudindo os alicerces daquela sociedade imperial, questionando o seu anacronismo.

Spirito Santo
Novembro 1996
(Todos os direitos reservados. Artigo registrado sob uma licença Creative Commons)

(Foto- corte – 1885. Marc Ferraz em fazenda do Vale do Paraíba do Sul)

Foto Tia Ciata Fake e outras fancarias


Foto Ciata Fake e outras fancarias

Ainda (de novo…ai como cansa!) Tia Ciata e os negacionismos inacreditáveis na história do negro africano no Brasil.

Esta é a minha segunda prova do que já revelei diversas vezes por aí, acerca de uma foto equivocadamente atribuída como sendo de Tia Ciata, suposta matriarca do Samba que, teria “nascido” no quintal de sua casa.

Achei esta capa de livreto com uma suposta Ciata, durante a pesquisa para o meu livro, nos idos de 2003. O título sugere, que não só a senhora não é Ciata, como era, isto sim da Irmandade da Boa Morte podendo mesmo ter sido até uma das fundadoras da irmandade (uma ou outra fonte, aliás, atribui a ela o nome de Teresa.)

“Asseata”, Hilária Baptista, a Ciata falada, segundo fontes muito vagas ainda, teria pertencido à irmandade, embora a pouca idade com que chegou ao Rio de Janeiro (22 ou 26 anos) não justificasse nenhum dos muitos méritos a ela atribuídos quando ainda na Bahia, inclusive ser venerável da referida irmandade.

Querem saber uma coisa que mais me surpreende? A irmandade católica de Nsa Senhora da Boa Morte é tema de trocentas pesquisas de teses de mestrado e doutorado na Bahia e pelo Brasil afora. Não é possível que nunca tenham descoberto quem é esta venerável senhora da foto.

Esta foto aparecer assim e permanecer tanto tempo com uma legenda tão absurda é uma prova da nossa displicência ou descaso acadêmico, indesculpáveis.

A imagem de Ciata, aliás, é um dos exemplos mais constrangedores de nossa incúria historiológica quando se trata de cultura dos africanos no Brasil. Fonte inestimável de dados e informações sobre nosso passado neste campo, infelizmente vários fatores lamentáveis parecem alimentar esta displicência para com nossa iconografia.

O primeiro deles é o caráter tutelado de nossa fotografia de valor etnológico nos tempos coloniais, atividade que surgida no Brasil no fim da primeira metade do século 19, cuidou de omitir, com critérios de auto censura cirúrgicos, qualquer sinal de crueza e violência do Sistema, a ponto de, se fôssemos fazer uma análise das principais características do trabalho escravo no Brasil nos baseando apenas em fotografias de época, chegaríamos a conclusão de que tudo foi muito humano e responsável, uma escravidão light, por assim dizer.

O fato da maioria dos fotógrafos instalados no país serem estrangeiros mecenados pelo imperador, diz muito a este respeito, mas não explica tudo.

O que impediria esses estrangeiros de produzir material independente, por sua própria conta e guardar secretamente ou transferi-lo para acervos no exterior?

E o que dizer da quase completa ausência de material produzido por fotógrafos brasileiros? Não é, contudo improvável que mais dia menos dia, surjam registros mais crus e realistas por aí.

O outro problema, mais constrangedor ainda, é a estranha cumplicidade leniente de pesquisadores, inclusive de ponta, inclusive negros, para com a sistemática difusão de dados equivocados sobre nosso, já em si mesmo precário acervo fotográfico sobre cultura africana no Brasil.

Desmoralizada a atribuição da presença de Tia Ciata nas fotos analisadas acima, eis que vai se tornando comum, à algumas fontes e de modo enfático, atribuir o nome de Ciata à uma outra foto, esta de uma jovem mulher paramentada com a indumentária típica das mulheres baianas.

O que espanta nesses casos, é sempre a ausência da autoria ou dados que corroborem a alegação de que a imagem é mesmo de Ciata, ou de “Dandara”, ou de “Aqualtune”, ou de “Teresa de Benguela” ou outras, também supostas heroínas negras aventadas com insistência militante por aí.

A verdade é que, infelizmente são falsas atribuições, motivadas por uma espécie de ignorância irresponsável, quando não oportunismo editorial (o mercado de livros didáticos sobre o tema, em tempo de ações afirmativas) praticado, principalmente por jovens pesquisadores ou autores negros em seus equivocados arroubos militantes.

Neste caso emblemático dessa “nova” imagem atribuída à Ciata, a prova inconteste de que as falsificações são grosseiras e deliberadas: A imagem original, sem recortes, que exponho aqui a baixo, é claríssima. Trata-se de um cartão postal comum, impresso no fim do século 19, no exemplo com uma dedicatória escrita já no início do século 20 (1907). O autor da foto, cujo nome está impresso no postal, é o alemão Rodolpho Lindemann.

O que se deve observar, gravemente é que em todas as centenas de reproduções da imagem, a parte que informa as exatas referências da foto de uma mulher anônima foi, deliberadamente cortada, afim de que falsa atribuição se disseminasse. O ato de falsear a atribuição teve um único autor precursor, mas como explicar a exponencial proliferação da farsa de modo tão generalizado?

Numa imagem meio desconhecida (publiquei-a na primeira edição do meu livro em 2011 e, seguidamente no meu blog e aqui mesmo no faceboo e outras redes sociais),contudo, a grande surpresa:

Nela, os integrantes do bloco “de pilhéria” (“de sujo”) “O Macaco é o outro”. Reconhecidamente liderado por Tia Ciata, me parece muito evidente que a figura ao centro do gupo, em nítida proeminência, pode ser, aí sim, Hilária Baptista, a Tia Asseata.

E por fim o mais impressionante: Ninguém, rigorosamente ninguém se digna a acreditar nas evidências que apresento! Teimam, de modo quase neurótico em não acreditar naquilo que é real e comprovável.

Talvez sejamos mesmo um povo talhado para ser enganado.

Spirito Santo
Novembro de 2021 (Repostando com adendos)

(Anexei agora mesmo o testamento de Hilária Baptista, Tia Ciata, pelo visto uma senhora de algumas posses a julgar pela quantia que possuía:

https://eurio.com.br/noticia/31887/arquivo-central-recupera-registros-da-vida-de-tia-ciata-matriarca-do-samba.amp)
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*“Rodolpho Frederico Francisco Lindemann (Alemanha ca.1852 – s.l. s.d.). Fotógrafo. Ativo no Brasil entre as décadas de 1870 e 1890. Pouco se sabe, a não ser que é associado ao suíço Guilherme Gaensly, com quem divide o estúdio do Largo do Theatro quando este ainda está em Salvador..

…Realiza ainda vistas nas províncias de Alagoas e de Pernambuco, assim como retratos de escravos e negros libertos em estúdio. Seu trabalho está representado nas coleções Gilberto Ferrez, no Rio de Janeiro, e do Instituto Moreira Salles, em São Paulo.”

(Fonte: Itaú Cultural)

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*“Rodolpho Frederico Francisco Lindemann (Alemanha ca.1852 – s.l. s.d.). Fotógrafo. Ativo no Brasil entre as décadas de 1870 e 1890. Pouco se sabe, a não ser que é associado ao suíço Guilherme Gaensly, com quem divide o estúdio do Largo do Theatro quando este ainda está em Salvador..

…Realiza ainda vistas nas províncias de Alagoas e de Pernambuco, assim como retratos de escravos e negros libertos em estúdio. Seu trabalho está representado nas coleções Gilberto Ferrez, no Rio de Janeiro, e do Instituto Moreira Salles, em São Paulo.”

(Fonte: Itaú Cultural)