O InfantoCampo – Jardim lúgrube das desinfancias

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Moleques do Ayrton Senna com com Pick up - Arte e foto Spírito Santo

pMoleques do Ayrton Senna com com Pick up – Arte e foto Spírito Santo

O Infantocampo e sua configuração geral.

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, á profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,violência, crueldade e opressão.”

 (Artigo 227 da Constituição Federal)

OAtrás das grades.

“Eu podia estar roubando, matando, traficando, estuprando”… mas estou aqui contando edificantes histórias para vocês. Nem preciso me exaltar, apelar muito para a ênfase. Basta apenas descrever friamente o cenário do lugar:

O espaço é enorme. Fica num platô na fralda do Morro dos Macacos virada para o Morro da Mangueira. Dali de cima a cidade lá em baixo desaparece, e a impressão nítida que se tem é a de que a favela é a principal cara urbanística da cidade. O Favelão geral é o Rio de Janeiro real.

O abrigo’ Ayrton Senna, um complexo de construções modernas (embora com marcas fundas de abandono nos últimos anos), foi construído, presumo numa das gestões iniciais do longo governo do prefeito Cesar Maia para ser um abrigo modelo, numa época em que o problema dos meninos e meninas ‘de rua’ tinha repercussão pública muito negativa, internacional até, exigindo soluções rápidas por parte da prefeitura, que teve em seus imperativos esforços, o apoio do governo federal, da Unicef e de muitas outras instituições, com milhões de reais e dólares envolvidos.

Logo que se estaciona, se dá de cara com um estreito corredor limitado por grades, com várias meninas mães adolescentes ou grávidas displicentemente sentadas ao longo de um banco, amamentando bebês. Algumas criancinhas muito novinhas, também filhas destas moças, nos cercam remelentas, cheias de carência por afeto.

Não entramos por esta porta e não vemos o que há lá dentro. Uma fonte segura, contudo testemunha ocular de tudo que ocorre ou ocorreu ali nos últimos anos – a qual, por razões óbvias não posso revelar o nome – nos descreverá meticulosamente tudo que há lá dentro, oculto nas partes atrás das grades, salas, galerias (sei lá como denominá-las) as quais não tivemos acesso.

Informações do mesmo modo fidedignas de como é este lugar por dentro nos foram repassadas também por crianças abrigadas aí, e com as quais tive muitas conversas enquanto trabalhava, fazendo música com elas, entre os anos de 2005 e 2008, na chamada ‘Casa do Lins’, espécie de centro cultural infantil da Obra Social da Prefeitura do Rio, uma experiencia exitosa, infelizmente logo, sumariamente descontinuada pela prefeitura da época, logo que esta assumiu.

Pela descrição das testemunhas o espaço lá dentro do abrigo’ Ayrton Senna é amplo e esconde muitas mazelas. As meninas ali abrigadas – na verdade presas – a maioria na faixa entre os 14 e os 17 anos, em sua maioria estão ou estiveram envolvidas com drogas ou algum tipo de prostituição. Muitas estão grávidas ou deram à luz recentemente, entre estas algumas estão soropositivas. Como se pode constatar em nossa visita, algumas crianças filhas destas meninas já estão crescendo por ali mesmo, do mesmo modo presas e sem futuro à vista.

A informação mais impactante sobre esta ‘galeria‘ das meninas adolescentes é a de que as recém paridas, convalescentes, ganham o direito de ficar numa espécie de ‘quarto particular’ mas estes ‘quartos’ na verdade são cubículos com grades, onde elas ficam o tempo quase inteiro trancadas, aparentemente para serem impedidas de fugir.

O fato é que a condição do encarceramento de crianças – inclusive, como pude constatar pessoalmente até as mais novinhas (a faixa etária dos abrigados é de zero anos aos 18, o limite legal) – é a regra deste ‘abrigamento’. O sistema é pois, literalmente um sistema prisional, em todos os seus aspectos semelhante aos sistemas prisionais de adultos.

Todas as crianças são, literalmente aprisionadas em grandes galerias independentes, limitadas por uma grade principal (que sendo de pequeno porte ilude, engana quem está de fora sobre as dimensões razoáveis de cada galeria). As crianças ali ficam, permanentemente, só saindo para as refeições, para eventos externos esporádicos ou para irem à escola municipal mais próxima. Nestas galerias, que dispõe de solariuns exclusivos, exatamente como galerias de presídios, os móveis, camas, as mesas, etc. são de cimento, com o fim provável de impedir incêndios em rebeliões.

(Ao intuir esta função para os móveis de cimento, fiquei imaginando que perigo poderia oferecer ao ‘sistema’ aquelas criancinhas frágeis, ansiosas por afagos e carinho como as muitas de 3, 4, 5 anos de idade que vi no dia em que visitei o lúgubre ‘abrigo’.)

Cada galeria é controlada por uma funcionária (geralmente são mulheres), chamada pelas crianças de ‘tia‘, como qualquer adulto é chamado por ali. Cada grupo de crianças de uma galeria fica sob a guarda de uma destas funcionárias durante todo o tempo, trancadas que estão, a elas submetidas em todas as circunstancias e delas completamente dependentes.

Os relatos sobre barbaridades cometidas contra as crianças por algumas destas funcionárias do ‘sistema‘ são numerosos. Surras são frequentes e tomei conhecimento de maus tratos até com bebês, recém-nascidos (inacreditável, certo?). Soube por uma destas minhas fontes, inclusive que era – ou é, como saber? – comum entre algumas destas funcionárias desviar para si mesmas, roubar enfim, os alimentos estocados nas galerias e refeitórios para as crianças, inclusive aqueles destinados às crianças mais novinhas como leite, ‘danoninhos‘, ‘todinhos‘, queijo, biscoitos, etc.

Este tipo de prática asquerosa e recorrente, aliás, eu mesmo testemunhei, pessoalmente numa unidade da FIA (Fundação para a Infância e a Juventude), instituição similar pertencente ao governo do Estado. Além dos que testemunhei, estes inomináveis relatos eu recolhi tanto de crianças com as quais trabalhei na ‘Casa do Lins’, quanto com adultos que trabalharam em abrigos da prefeitura como o Ayrton Senna.

A ampla rede de cumplicidades que acoberta estas práticas, muitas vezes envolvia – ou envolve, sei lá – até a omissão da direção do ‘abrigo‘. Os (as) funcionários (as) – não todos, porém muitos já que a prática exige a cumplicidade da maioria – saqueiam abertamente a farta dispensa destas unidades deixando para as crianças apenas algumas sobras. A justificativa cínica é sempre o fato destas pessoas – geralmente sub escolarizadas e sem preparo algum para a função que exercem – serem mal remuneradas.

Estas figuras antes conhecidas, oficialmente como ‘educadores sociais’ um eufemismo sórdido quando se conhece a natureza real de suas funções – são na verdade o equivalente dos carcereiros das prisões de adultos, sem tirar nem por e com o agravante de que a crueldade de alguns é covardemente aplicada sobre crianças, absolutamente indefesas.

Acredite quem quiser, mas campo de concentração nazista perde.

Além das grades

Do contexto exterior, dominado pelo grande platô onde o ‘abrigo‘ foi construído, no sopé de uma pequena mata, conta-se que nos tempos mais violentos da guerra de facções criminosas no Rio de Janeiro, os grupos do Morro dos Macacos e os do Morro da Mangueira trocavam tiros com balas traçantes. Nos tempos de trégua ou acordo unificavam seus negócios que envolviam sempre algum tipo de relação com os/as adolescentes e funcionários do abrigo, sob a vista grossa da Prefeitura. As relações sexuais entre meninas e jovens traficantes, além da distribuição e/ou guarda de drogas dentro do abrigo, eram – não e sabe se ainda são – ocorrências, de certo modo comuns.

Rumores de que havia a oferta de prostituição de meninas e alguma oferta de pedofilia (de meninos e meninas) também eram comuns Pode ser que tenha havido – e estes relatos, sempre à boca pequena, eu ouvi também das próprias crianças do ‘Ayrton Senna’ – uma rede de taxistas explorando este comércio abjeto, a parte mais sórdida de todas as mazelas locais, já que crianças muito novas (meninos e meninas, entre os 8 e os 12 anos de idade) podem estar sendo abusadas sexualmente por pedófilos – homossexuais masculinos e femininos, de classe média, frise-se – induzidas por dinheiro e ofertas banais como comida, guloseimas ou até mesmo drogas, em hotéis da Zona Sul do Rio, fatos que não raro são pincelados, aqui e ali, na imprensa, em casos aparentemente isolados.

Esta rede de exploração infantil mais submersa, contudo não é o lado mais cruel da história. Sabe-se com aquela certeza improvável que ajuda a acobertar os grandes crimes (‘ninguém sabe, ninguém viu”), que a setor do atendimento institucional à criança e ao adolescente, engordado por muitas verbas e recursos, se transformou numa frente muito rendosa de desvio de verbas públicas.

O Fundo Rio também é responsável pela celebração de contratos com empresas e convênios com Organizações da Sociedade Civil, Associações de Moradores, Universidades, estabelecendo parcerias para execução de seus programas: Rio Criança Maravilhosa, Rio Jovem, Rio Experiente, Rio em Família, SOS Cidadania, Vem pra Casa, Oficina da Criança, Crianças e Jovens em Situação de Risco e Mulheres Vítimas de Violência. A maioria dos convênios envolve repasse de recursos.”

(Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro. Secretaria de controle Externo 2ª Inspetoria Geral – Inspeção ordinária/ 2001/)

No caso presente, conta-se – cala-te boca! – com indícios bem sugestivos e factíveis, que o processo de terceirização das ações neste âmbito (exigido por lei), passou a ser controlado a partir dos anos 90 – comercialmente, financeiramente mesmo – pelos próprios secretários de ação social e funcionários de alto escalão, por intermédio da criação de uma rede de ONGs e Sociedades Filantrópicas.

Algumas dessas instituições são de fachada (tendo muitas vezes estes próprios secretários como eminencias pardas, acobertados por estatutos ‘quentes‘, com presidentes e diretores de Ongs funcionando como testas de ferro), associadas a uma rede de interesses escusos suplementares, formada por pessoas ligadas aos conselhos municipais de ‘defesa‘ da criança e do adolescente, aos conselhos tutelares e varas de infância etc. O esquema de corrupção desta área carreou, como um duto de esgoto clandestino, muito dinheiro destinado às crianças sob a sua guarda.

A possibilidade desta rede de corrupção na área da atenção à criança e ao adolescente existir (ou ter existido), não tem nada de remota, como se sabe. Basta se observar que este tipo de prática se tornou, absolutamente comum no Brasil de hoje em dia.

…E se estas coisas existem, lógico que Deus, ou não existe ou é um omisso incompetente.

O fato é que com a criminosa descontinuação da solução anterior (anos 90) que se caraterizava pela construção e equipagem de uma rede de escolas públicas chamadas de Cieps (grandes unidades educacionais, integradas à comunidades específicas, que associavam educação, saúde, alimentação e abrigamento de crianças de rua ou abandonadas, com assistência à todas estas crianças em tempo integral) toda uma rede de abrigos e uma política de reclusão de crianças órfãs ou abandonadas foi então estabelecida na cidade do Rio de Janeiro, política esta articulada com o ministério público e inserida, pois, num contexto aparentemente legal, baseado em regras do Estatuto de Defesa da Criança e do Adolescente (ECA), numa rede de conselhos tutelares, etc.

Após quase duas décadas de vigência do ECA é preciso superar a política de internação de crianças pobres que permanece desde o Código de Menores de 1927.

Pesquisas recentes em âmbito nacional e os censos do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro constataram que a maior parte das crianças e adolescentes em situação de abrigo em entidades tem famílias, com indicativo de que a maioria está em vulnerabilidade social. É inadiável a mudança do modelo socioassistencial, ainda em uso no Brasil.

Mudar significa “...reorientar as redes pública e privada que historicamente praticaram o regime de abrigamento, para se alinharem à mudança de paradigma proposto. Este novo paradigma elege a família como unidade básica de ação social e não mais concebe a criança e o adolescente isolados do seu contexto familiar e comunitário…

(Leia mais neste link)

Só para se ter uma ideia do paradigma diabólico que representou a adoção desta política de ‘abrigamento‘ de menores, claramente em desacordo com recomendações internacionais como a descrita acima, as ações deste contexto…”sócio educativo” (“defesa”da criança e do adolescente) foram todas transferidas a partir de 2006 (às vésperas dos Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro) do âmbito da Educação para o da Segurança Pública, com a entrada do Ministério da Justiça e da Polícia Federal (SENASP) no rol das instituições voltadas para a ‘solução final’ do problema.

Como vocês verão, portanto a adoção desta política, teve suas intenções escusas cuidadosamente ocultas. Para os mais atentos, contudo elas sempre tiverem contorno claramente nazi fascista, já que na prática é uma política que se resume à criação de uma espécie de rede de pequenos campos de concentração (um sistema prisional infanto juvenil) nos quais as crianças caídas nas armadilhas da exclusão social, típica do modelo de sociedade que adotamos (a maioria composta por crianças negras, diga-se), são virtualmente aprisionadas e entregues à própria… sorte.

Esta trágica…‘sorte‘ é a destas crianças ficarem encarceradas em celas coletivas, contidas ali até a maioridade, momento no qual, como cães vira latas, são lançadas à nova ‘sorte‘, pior ainda que a anterior, das ruas, sem alternativa alguma que não seja cair nas mesmas mazelas a que estavam expostas (prostituição, pedofilia, etc.) sem falar nas outras que são a de virarem traficantes, viciados em crack e morrerem por aí assassinadas, ao deus-dará, agora sem que o estado tenha qualquer responsabilidade legal sobre o quase sempre funesto destino delas.

E eu mesmo já disse certa vez num post aí:

Outro aspecto muito preocupante é que, com a falência do sistema das chamadas ‘medidas sócio educativas’ (Degases, Criams – depois Criadds- e Febems), já estão sendo irresponsavelmente criados pelas autoridades estaduais e municipais, alguns canais de articulação entre estes falido sistema de medidas sócio educativas para menores infratores e a rede pública convencional de ensino, contaminando cada vez mais o sistema de educação pública com o já explosivo problema da exclusão social de jovens no Brasil, o consumo e a venda de crack, etc.

Jovens infratores, a maioria deles ligada ao tráfico de drogas, após o cumprimento de medidas sócio educativas, cumpridas literalmente em prisões juvenis (para quem não sabe o sistema Degase mantêm três colégios-presídios no Rio: Padre Severino, João Luiz Alves e Santos Dumont), quando não possuem família ou parentes responsáveis, são transferidos em grande medida para uma rede de abrigos municipais e, posteriormente matriculados como manda a lei, nestas escolas públicas convencionais, sem nenhum procedimento de adaptação, sem nenhum objetivo aparente que não seja usar a rede pública como mais um dispositivo de controle, exclusão e, agora repressão, meros depósitos de retenção e contenção de crianças pobres ‘em seu lugar’, em ultima análise.”

Um ‘Sistema’ prisional infanto juvenil

Provavelmente com o fim de burlar leis internacionais, normas e recomendações da ONU e escapar de denúncias de agencias internacionais de direitos humanos, o sistema é planejado para aprisionar crianças em unidades de tipo diverso, segundo o grau de sua ‘periculosidade‘. Estes procedimentos de ocultação das verdadeiras intenções de suas ações são ora sutis, ora grosseiros. Uma rápida análise de suas siglas pode nos indicar pistas bem claras deste crime institucional recorrente.

Degase (Departamento Geral de ações sócio educativas), Cemasis (Centros Municipais de Ação Social Integrada), CRIAMs – Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor (na verdade centros de prisão em regime semiaberto) CRIAADs – Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente (mesma função dos Criams, aos quais apenas eufemísticamente substituem.

O texto aqui linkado é muito eloquente a estes respeito:

O conceito abrigamento que é de 1927 tem aquele ranço nazi fascista do isolamento ou apartamento de um grupo social problemático ou incômodo ao resto da sociedade. Isolado o grupo, decide-se então o que fazer com ele. Os nazistas usaram este mesmo conceito com judeus e outros grupos e decidiram pela ‘solução final’: matá-los.

Este mesmo, autor Deste artigo (já contei isto aqui) fui, dos 4/5 aos 12/13 anos – de 1952 a 1960 – presa indefesa desta armadilha que à época se chamava S.A.M. ( Serviço de Assistência ao Menor) da qual, graças a sei lá que Deus, escapei e estou aqui para contar esta história doída)

No caso de sociedades como o Brasil funciona assim:

Parte considerável da sociedade é excluída da maioria de seus direitos de cidadania. Este processo de exclusão, assume naturalmente, como consequência direta desta privação de direitos básicos, a forma de exclusão física, geográfica mesmo, estruturando-se em bolsões de miséria, guetos (favelas, ‘complexos’, etc.) nos quais a população excluída cria suas próprias regras de conduta e convivência, regras estas que já contêm em si mesmas a providencial característica de serem facilmente controladas, militarmente em casos de extrema necessidade (vide as falidas UPPs).

Presa a esta armadilha desde que nasce, a criança adquire, pois, neste caso o papel de eixo do problema já que já nasce um cidadão privado de, rigorosamente todos os seus direitos, direitos estes que ele desconhece completamente, nem sabe que os tem. É esta criança que virá a ser a mãe ou o pai de uma outra criança idêntica, a ser, do mesmo modo abandonada a seguir. A ex-criança, uma vítima adolescente ainda do mesmo abandono cíclico, fatal, é reservado o inexorável mergulho num círculo vicioso: o destino de não ter futuro algum.

É mais ou menos óbvio que o que movimenta esta roda iníqua é o fato do Estado ter como premissa não atender a todos, mantendo sempre um contingente enorme de sua população à margem de tudo. É nesta premissa que reside a estupidez do sistema, pois, o custo financeiro da manutenção destes processos de exclusão é quase sempre maior do que a criação de soluções e processos de inclusão social efetivos (uma rede de educação infantil em tempo integral, por exemplo, a mui combatida e descontinuada solução anterior, a dos anos 90)

A constatação mais evidente de que estas crianças estão destinadas a esta ‘sorte‘ deprimente (e este talvez seja o aspecto mais asqueroso desta história) são os maus tratos a que elas estão submetidas desde bebês, até se tornarem imputáveis, responsáveis por seus próprios atos para daí serem, de novo punidas. Este é, sem dúvida o lado mais execrável de todo este drama introjetado pelo sistema na alma e no caráter destas crianças, crime de lesa humanidade do qual todos nós, por ação ou omissão, merecemos algum tipo de castigo.

E teremos este castigo sim, podem ter certeza. A pieguice dos cínicos não os salvará. Um dia haveremos de pagar, todos, amargamente, as penas por estarmos cometendo esta covardia inominável. O descaso, o abandono e o infanticídio com requintes de crueldade, não são práticas dignas de seres humanos. É abjeto. De algum modo isto está nos consumindo e pode nos matar, inviabilizar como sociedade.

Quem vai querer pagar para ver?

Podemos adiar sine die o nosso desejo de vingança – quase de matar – os que se acumpliciam com esta situação. Sim, chego mesmo a pensar na morte de gente assim, dada a inaceitável e incurável natureza de sua covardia. E vejam: É esta rede de cumplicidades que mantêm vivas estas odiosas ações do chamado ‘poder público’.

A rede é urdida pela sociedade. Embora não exista, exatamente um ‘gênio do mal’ puxando cordões, mexendo pauzinhos, claro, que ela é também uma construção individual. Os agentes diretos, aqueles que decidem as práticas, assinam ordens de serviço e memorandos são identificáveis, mas eles não são poder real, em si, aqueles sob os quais as iniquidades se apoiam. O poder real está na malha de omissões dos subalternos. No caso, o mal somos nós. O mal está em nossa covardia. A prefeitura é a responsável direta pela política de optar pelo abrigamento e pela construção e gestão dos equipamentos, mas são os subalternos cidadãos que plantam e regam as raízes, que fazem crescer e vicejar a planta do mal.

Existe uma rede comovida de gente caridosa, grupos, indivíduos que esfregam à água e sabão o ranço desta iniquidade com a sua boa vontade. O Norte Comum, por exemplo, é um grupo formado por uma garotada simpática, de classe média a maioria, residente na área de Vila isabel onde fica o ‘abrigo’ Ayrton Senna. Em parceria com o Sesc e seu projeto “Geringonça’, o Norte Comum tem promovido periódicas intervenções culturais humanitárias voltadas para as crianças do ‘abrigo’ e das favelas locais.

O Norte Comum, aliás, foi o nosso anfitrião no ‘show oficina’ que o nosso MusikEletroFolk (cria do Musikfabrik, projeto de extensão que o Tio coordena na Uerj) fez para as crianças do local recentemente.

São muito recorrentes ações deste tipo nos abrigos do município. Estas ações muitas vezes são promovidas pela própria prefeitura. São estes setores que estimulam outras tantas propostas honestas do mesmo tipo, como esta a seguir, pinçada de um comentário do facebook:

Estou querendo organizar um Mutirão de Reforma do lugar (o ‘abrigo’) com apoio de bandas e artistas em geral… Se quiser me ajudar a organizar isso seria legal!

Eu quero, fala com o fulano tb que é bom em reforma”

Mas vamos combinar. Muito comoventes, mas ingênuas demais estas propostas. Acabam representando ações ‘panos quentes’ que não tocam no cerne do sistema e não o questionam ( e por isto são toleradas), contribuindo, involuntariamente para perpetuá-lo, mantendo as coisas como estão.

O abrigo Ayrton Senna de nosso exemplo, é um equipamento da rede da Prefeitura do Rio que, de modo algum, como todos sabemos não é uma instituição carente. Como se sabe também existe um batalhão de especialistas no atendimento à crianças e adolescentes, psicólogos, assistentes sociais, educadores, etc. trabalhando para o sistema, bem como um número semelhante de críticos especialistas, ao contrário, denunciando a odiosa situação destas crianças.

O abandono físico das instalações do ‘abrigo’ Ayrton Senna é, portanto – só pode ser – apenas o reflexo da ordem de prioridades estabelecida pela Prefeitura da época e pelas anteriores com relação à questão.

Mesmo que o problema físico do local fosse passível de solução por parte da meritória ação de particulares (presumo que haja até um impedimento legal para este tipo de intervenção, sem falar na burocracia) é preciso salientar que o problema real é político. Aquelas crianças são prisioneiras do sistema. É esta (o descaso) a política estabelecida, à nível municipal, estadual e federal para o problema da exclusão social de crianças no Brasil.

É preciso se afirmar, gravemente que a situação de abandono de crianças e adolescentes no Brasil é DELIBERADA e ampla, pois, é parte de uma política, um conjunto de ações muito bem urdidas, articuladas e sobejamente financiadas por verbas nacionais e internacionais com o enfoque (esquizofrênico, diga-se) direcionado apenas à questões de segurança pública.

A única forma eficiente de combater isto (ações pontuais são meritórias sim, claro, mas não passam de paliativos, como se diz) talvez seja, ao mesmo tempo em que se ‘enxuga o gelo’, constatar as mazelas deste sistema de natureza claramente prisional, quebrar a malha de cumplicidade e omissão que o mantêm ativo e denunciá-lo como intolerável.

Sobra dinheiro neste campo de ação no Brasil. O que falta mesmo é vergonha, atitude e pressão da sociedade para moralizá-lo.

Lugar de criança é na escola e em casa, com alguma família. Qualquer situação que uma criança esteja na rua é melhor do que a que elas vivem nestas prisões infanticidas. É preciso quebrar as pernas e as garras deste sistema, cortar as suas várias cabeças, demoli-lo enfim. É preciso libertar, alforriar estas crianças.

É uma sociedade parasita esta que criamos e estamos mantendo no Brasil, uma sociedade canalha que, literalmente não só rouba pirulito das criancinhas como lhes rouba a comida, os sonhos, o sangue e a própria vida. Acanalhamo-nos todos. Comedores de criancinhas, acabamos virando abutres, hienas carniceiras de nós mesmos.

“…Você pode até dizer que eu estou por fora, ou então que eu estou inventando”…

O mínimo que uma criança como estas pode fazer do que restar de humanidade nela, é se voltar contra nós com um caco de vidro, uma faca, uma gilete, um revólver, cuspindo no nosso rosto todo o seu desprezo.

É justo. Quem pariu Mateus agora que o embalance.

Spírito Santo

Junho 2012

3 respostas em “O InfantoCampo – Jardim lúgrube das desinfancias

  1. Reblogged this on Mamapress and commented:

    Impresionante relato do professor de música e um dos criadores do Grupo Vissungo, Spírito Santo.

    Quantas coisas invisíveis temos em nossas cidades. Sem manchetes e sem carinho crescem nossas crianças. Enjauladas no cimento do esquecimento!

    O Infantocampo e sua configuração geral.

    “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, á profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,violência, crueldade e opressão.”

    (Artigo 227 da Constituição Federal)

    Atrás das grades.

    “Eu podia estar roubando, matando, traficando, estuprando”… mas estou aqui contando edificantes histórias para vocês. Nem preciso me exaltar, apelar muito para a ênfase. Basta apenas descrever friamente o cenário do lugar:

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  2. Quanta ingênuidade minha… fiquei até constrangido depois de ler esse texto… a verdade é muito pior do que eu poderia imaginar…

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