O Cais do Valongo deu no “The New York Times”

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Os navios negreiros no século 19, atracavam no cais de pedra enorme na Rua do Valongo, exposto por arqueólogos perto do porto do Rio de Janeiro. Foto Lianne Milton para o The New York Times .) Os navios negreiros no século 19, atracavam no cais de pedra enorme na Rua do Valongo, exposto por arqueólogos perto do porto do Rio de Janeiro. Foto Lianne Milton para o The New York Times .)

(Da série “Eu não disse?Eu não disse?Eu não disse?”)

Fiz aqui no meu blog uma profícua série de posts sobre o assunto Cais do Valongo. Já faz tempo. O artigo principal se chamava “A arqueologia do Caô Caô” (leia a série completa a partir deste link: “A Lama do Valongo. Arqueologia do Caô Caô”

Tomei uns cascudos de gente omissa, ignorante ou oportunista, envolvida com os graves fatos que os posts denunciavam: A completa e suspeita indiferença carioca pela surpreendente importância arqueológica da região compreendida pelo Cais do Valongo e o chamado cemitério dos pretos novos, descobertas arqueológicas do acaso.

Titio falou também do caráter, muitas vezes raso das pesquisas relacionadas aos achados, e, principalmente do desinteresse das autoridades da Prefeitura e seu Porto Maravilha, preocupadas muito mais em esconder do que revelar as descobertas, numa ação que denominei “desarqueologia”.

Validando minhas afirmações sobre a importância histórica e arqueológica dos sítios fiz uma relativamente bem acurada pesquisa, chegando a conclusões muitas vezes inéditas, consideradas por muitos como tresloucadas ilações de um pesquisador piradão, mas vistas como pertinentes por quem sabe, pelo menos fazer um “o” com um copo.

Pois sim. Rindo a toa agora. Não é que hoje mesmo, tudo que o Titio concluiu, junto a uns poucos gatos pingados, acaba de sair, quase que literalmente levantado por uma excelente matéria, nada menos que do…THE NEW YORK TIMES?

E agora? Colonizados que são vão dizer o que os omissos e os oportunistas de plantão?

“Corrida do Rio rumo ao futuro atropela passado escravo”

(Por Simon Romero para o “The New York Times” – 8 de Março de 2014

Fotos de Lianne Milton – Tradução livre de Spirito Santo )

“RIO DE JANEIRO – Vindos da costa angolana, do outro lado do Atlântico, os navios negreiros atracavam no Rio de Janeiro no século 19 num enorme cais de pedra onde deixavam sua carga humana para as “casas de engorda” na Rua do Valongo. Cronistas estrangeiros descreveram a degradação deste mercado de escravos sempre superlotado, incluindo as lojas que vendiam crianças africanas magras e doentes.

Os corpos dos escravos recém-chegados que morriam antes mesmo de iniciada a sua labuta nas minas do Brasil, eram carregados para serem enterrados em valas comuns nas proximidades do cais. Os cadáveres eram deixados ao ar livre para se decomporem em meio a pilhas de lixo. Como se plantassem flores imperiais os escavadores do Cemitério dos Pretos Novos esmagavam os ossos dos mortos, para abrir lugar para “plantarem” milhares de novos cadáveres.

Agora, com equipes de construção civil demolindo enormes áreas do Rio de Janeiro para as obras dos grandes eventos da Copa do Mundo deste ano e dos Jogos Olímpicos de Verão de 2016, descobertas arqueológicas impressionantes estão sendo feitas no entorno dos canteiros de obra, oferecendo uma nova visão sobre a brutalidade que imperava na cidade do Rio no tempo em que ela era o centro nervoso do tráfico transatlântico de escravos.

Petrúcio Guimarães dos Anjos e sua esposa, Ana de la Merced Guimarães, em sua casa. Foto: Lianne Milton para o The New York Times Petrúcio Guimarães dos Anjos e sua esposa, Ana de la Merced Guimarães, em sua casa. Foto: Lianne Milton para o The New York Times

Mas, apesar disto as empreiteiras avançam pelos arredores do porto de escravos recém descoberto com seus projetos futuristas, como o Museu do Amanhã, que custa cerca de US $ 100 milhões e foi projetado na forma de um peixe pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava.

Esta frenética reforma urbana está desencadeando um debate sobre se o Rio está negligenciando seu passado histórico na corrida consumista para construir o seu futuro.

“Estamos descobrindo sítios arqueológicos de importância mundial e, provavelmente, muito mais extensos do que o que foi escavado até agora, mas em vez de priorizar essas descobertas nossas autoridades estão prosseguindo com a sua reconstrução grotesca do Rio”, disse Sonia Rabello, um jurista eminente e ex-vereadora.

A cidade instalou placas indicativas nas ruínas do porto de escravos e um mapa de um circuito da herança africana. Os visitantes podem agora caminhar pelo local onde estava localizado o mercado de escravos. Ainda assim, os estudiosos, ativistas e moradores do porto argumentam que tais ações são muito tímidas em comparação aos projetos urbanísticos de bilhões de dólares que vão tomando conta de todo o espaço.

Além do Museu do Amanhã, criticado por ser um empreendimento de custo muito elevado, as empreiteiras e as autoridades estão tocando ali numa série de outros projetos bombásticos, como um complexo de arranha-céus em homenagem a Donald Trump e um condomínio fechado para a moradia de juízes olímpicos.

Ao mesmo tempo, os descendentes de escravos africanos que vivem como posseiros em prédios decadentes ao redor do porto de escravos, estão se organizando num esforço para obter títulos para suas casas, colocando-se em conflito com a Ordem Franciscana da Igreja Católica, que reivindica a posse das propriedades.

“Sabemos que os nossos direitos”, disse Luiz Torres, 50, um professor de história e líder do movimento dos direitos de propriedade. Com as ruínas do mercado de escravos perto de sua casa, como testamento, ele acrescentou: “Tudo o que aconteceu no Rio foi moldada pelas mãos dos negros.”

(Foto: Ossos humanos esmagados de um cemitério foi descoberto na casa de Petrúcio Guimarães dos Anjos e Ana de la Merced Guimarães durante uma renovação. Crédito Lianne Milton para o The New York Times)

Os estudiosos dizem que a escala do comércio de escravos no Rio de Janeiro foi impressionante. De acordo com o banco de dados do Trans-Atlantic Slave Trade, um projeto da Universidade de Emory, o Brasil recebeu cerca de 4,9 milhões de escravos através do comércio atlântico, enquanto que a América do Norte importou apenas cerca de 389.000 durante o mesmo período.

Acredita-se que o Rio de Janeiro tenha importado mais escravos do que qualquer outra cidade das Américas, superando lugares como Charleston, Carolina do Sul; Kingston, Jamaica e Salvador, Bahia. Ao todo o Rio recebeu mais de 1,8 milhões de escravos africanos, ou 21,5 por cento de todos os escravos que desembarcaram nas Américas, disse Mariana P. Candido, historiadora da Universidade de Kansas.

“Os horrores cometidos aqui são uma mancha na nossa história”, disse Tânia Andrade Lima, arqueóloga chefe das escavações que expuseram o Porto do Valongo, construído logo após o príncipe regente de Portugal, D. João VI, fugir dos exércitos de Napoleão, em 1808, transferindo a sede da seu império de Lisboa para o Rio.

Ativistas dizem que as descobertas arqueológicas mereciam, pelo menos um museu e as escavações deveriam ser muito mais extensas, a exemplo de projetos similares de outros lugares, como o Museu Slavery International, na cidade portuária britânica de Liverpool, onde os navios negreiros eram preparados para as viagens, o Museu Old Slave Mart em Charleston e Castelo de Elmina, um entreposto para o comércio de escravos na costa de Gana.

O Cais do Valongo funcionou até a década de 1840, quando as autoridades resolveram soterrá-lo sob um cais mais elegante concebido para receber a nova imperatriz do Brasil da Europa. As duas construções foram finalmente soterradas, passando a fazer parte de um bairro residencial popular conhecido vulgarmente como “A Pequena África“.

Muitos descendentes de escravos se estabeleceram na área onde o mercado de escravos funcionava e suas línguas africanas eram faladas na região ainda no início do século 20. Apesar do bairro ter conquistado amplo reconhecimento como berço do samba, uma das tradições musicais mais apreciados do Brasil, ele foi por muito tempo negligenciado pelas autoridades.

“Sabemos dos nossos direitos”, disse Luiz Torres, 50, um professor de história e líder do movimento dos direitos de propriedade. Com ruínas do mercado de escravos perto de sua casa, como testamento, ele acrescentou: “Tudo o que aconteceu no Rio foi moldada pelas mãos de negros

Navios negreiros no século 19, atracavam no cais de pedra enorme na Rua do Valongo, exposto por arqueólogos perto do porto do Rio de Janeiro. Crédito Lianne Milton para o The New York Times .)

O Dia da Consciência Negra é comemorado anualmente no Brasil em 20 de novembro, para que se reflita sobre as injustiças da escravidão. Em 2013 Sonia Rabello, observou que o prefeito Eduardo Paes, que está supervisionando a maior reforma da cidade em décadas, diante das pesadas críticas não compareceu à cerimônia no Valongo, onde os moradores começaram uma campanha para que o cais seja reconhecido como um Patrimônio Mundial da Unesco.

Para complicar o debate sobre a forma como o passado histórico do Rio precisa ser tratado no processo desenfreado de reconstrução da cidade, algumas famílias ainda vivem em cima dos sítios arqueológicos, ocasionalmente fazendo escavações por sua própria conta.

“Quando eu vi pela primeira vez os ossos, eu pensei que eram o resultado de um assassinato horrível envolvendo inquilinos anteriores”, disse Ana de la Merced Guimarães, 56, o proprietária de uma pequena empresa de controle de pragas que vive em uma casa velha quando os trabalhadores que realizavam uma reforma no imóvel descobriram os restos de uma vala comum em 1996.

Merced Guimarães descobriu assim que estava vivendo em de um vazadouro de corpos de escravos mortos que foi usado por décadas, até por volta de 1830. As estimativas variam, mas os estudiosos dizem que cerca de 20.000 pessoas foram enterradas nestas sepulturas, incluindo aí muitas crianças.

Merced Guimarães e seu marido optaram então por permanecer em sua propriedade, criando uma modesta organização sem fins lucrativos no local, onde os visitantes podem ver partes da escavação arqueológica. As autoridades têm planos para construir uma via expressa na rua de Merced, o que pode levar a mais descobertas.

“Este era um local de crimes indescritíveis contra a humanidade, mas é também o lugar onde vivemos”, disse Guimarães em sua casa, reclamando que os órgãos públicos têm fornecido pouco apoio a sua organização.

Washington Fajardo, um assessor do prefeito do Rio de Janeiro sobre questões de planejamento urbano, disse que alguns passos importantes foram tomados nos sítios arqueológicos, incluindo a designação do porto de escravos como uma área de proteção ambiental. Ele disse também que existe um plano em estudo para criar um laboratório de arqueologia urbana, onde os visitantes poderão ver resíduos e objetos arqueológicos e acompanhar o trabalho dos arqueólogos que estudam o material dos sítios.

A casa em ruínas perto de onde o mercado de escravos Valongo, no Rio de Janeiro, uma vez funcionou. Crédito Lianne Milton para o The New York Times)

Washington Fajardo também enfatizou que em outro novo empreendimento no porto, o Museu de Arte do Rio, moradores da região representam mais de metade do pessoal contratado.

“Nós gostaríamos de fazer mais”, disse ele, referindo-se ao cemitério de escravos. “É complexo, porque há pessoas que residem sobre os sítios. Se eles querem ficar, temos de respeitar os seus desejos” ‘

Ao longo da cidade do Rio, outras descobertas estão sendo feitas. Perto de um projeto de expansão de uma linha de metrô, os pesquisadores descobriram recentemente relíquias pertencentes a Pedro II, último imperador do Brasil, antes de ser derrubado em 1889. Perto do porto de escravos, os arqueólogos encontraram também canhões usados como parte de um sistema de defesa marítima da cidade com quatro séculos de idade.

Mas nenhuma das descobertas foi tão marcante como a do Cais Valongo em 2011 e as escavações anteriores do cemitério em casa de Merced Guimarães. Além das grandes pedras do cais, os arqueólogos encontraram itens que ajudaram a reconstruir o cotidiano dos escravos, incluindo peças de cobre, talismãs e dominós usados como jogos de azar.

Entre o porto de escravos e o cemitério, os visitantes também podem ver a Ladeira do Valongo, onde os depósitos de mercado de escravos do Rio de Janeiro, horrorizavam viajantes estrangeiros. Um visitante, Robert Walsh, clérigo britânico que veio para o Brasil em 1828, escreveu o local e as transações que ali ocorriam.

“Eles são mal tratados pelo comprador que os descreve citando as diferentes partes de seus corpos, exatamente como eu já vi açougueiros descrevendo um bezerro”, disse ele. “Já vi algumas vezes grupos de mulheres bem vestidas comprando escravos aqui, exatamente como havia visto senhoras inglesas se divertindo em nossos bazares.”

O legado de escravidão é evidente em todo o Brasil, onde mais da metade dos seus 200 milhões de pessoas se definem como negros ou pardos, tendo o país mais pessoas de ascendência africana do que qualquer outro país fora da África. No Rio, a grande maioria dos escravos veio do que é hoje Angola, disse Walter Hawthorne, um historiador da Universidade Estadual de Michigan.

“O Rio era uma cidade de forte e vibrante cultura africana”, disse Hawthorne. “As pessoas comiam, se vestiam e tudo o mais, tinham modos e hábitos enfim, em grande medida influenciados por práticas culturais angolanas”

Brasil aboliu a escravidão em 1888, tornando-se o último país das Américas a fazê-lo. Agora, a abordagem relativamente displicente em relação às presentes descobertas arqueológicas está levantando dúvidas se as autoridades estão mesmo,dispostas a rever esses aspectos da história do Brasil.

“Os arqueólogos estão expondo as bases de nossa sociedade desigual, enquanto nós assistimos a uma tentativa perversa de refazer a cidade em algo semelhante a Miami ou Dubai”, disse Cláudio Lima Castro, um arquiteto e estudioso de planejamento urbano….Estamos perdendo uma oportunidade de nos concentrarmos em detalhes importantes do nosso passado, e talvez até mesmo aprender com ele.”

(Taylor Barnes, contribuiu com esta reportagem.)

(Agradecimentos especiais ao amigo Vincent Rozemblatt que me repassou o original da matéria, a qual quem quiser pode ler neste link: “Rio’s Race to future intersects  slave past. Com o perdão pela esforçada tradução do Titio)

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Spirito Santo

Março 2014

4 respostas em “O Cais do Valongo deu no “The New York Times”

  1. Um trabalho de resgate inconfundivel.Que se eu coloboro para futura entrada da UNESCO.

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  2. Prezado senhor,

    Sou o jornalista responsável pelo site da professora Sonia Rabello.
    Inicio este email, primeiramente, pedindo-lhe desculpas pelo grave erro que cometemos ao não citar a sua tradução na matéria do The New York Times.
    Na pressa da edição, cometemos esse lapso, já corrigido ao citarmos no fim da tradução o seu blog. Agradecemos imensamente a sua ajuda e o seu apoio nas questões da nossa sociedade.

    Espero não ter causado nenhum transtorno e caso queira fazer alguma outra observação, estamos à disposição.

    Muito agradecido.

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  3. Pingback: “Corrida do Rio rumo ao futuro atropela passado escravo” no New York Times | Sonia Rabello

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