_NZAMBI-A-MPUNGO, AUÊ! Post #02

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Eureka sim, mas toda pólvora descoberta pode dar xabu.

(Leia post #01 Aqui)

Na pista deste mistério com certeza secular – afinal, que diabos será mesmo esta tal festa baiana do Zambiampungo? – que até eu mesmo julgava insolúvel, tive uma rápida conversa dia destes com gente angolana para ver se recebia um novo eureka.

Eu sei. Eureka é grego, língua – dizem – incompreensível para nós brasileiros, mas que mesmo assim, neste caso, vocês sabem muito bem o que quer dizer: Um insight, uma lâmpada imaginária acesa em cima na nossa cabeça querendo dizer:

_”Bingo! Matei a maldita charada!”.

Pois então. Atrás deste eureka, animado como sou, falei neste dia aí – e até descrevi – o Zambiapungo da Bahia para a historiadora angolana Fátima Moniz, na esperança dela ter uma pista qualquer, uma chispa ao menos. Teve na hora. Deu-me uma chave de ouro, que já havia me ocorrido, vagamente em outras reflexões:

_” Isto é Mukiche, gente!” _ Disse ela animada, simulando a dança deles, mascarados encantados do folclore Chokwe, do Sul de Angola. _”Eles assustam as pessoas pelas aldeias, as crianças se apavoram. Não se pode olhar nos olhos deles”.

Depois da conversa com Fátima achei a excelente tese original e completa de Alexandre A.B. Guimarães na internet (queria repassar o link, mas acabo de notar que a tese que li anteontem sumiu da rede! desapareceu) percebi que, também já havia nela a sugestão desta relação entre os Mukixes e o Zambiampungo:

“…Segundo ela (Yeda Pessoa, a linguísta), uma etnia banto do norte do Zaire, os Yaka, tem um culto aos ancestrais chamado nzambiapunga, tanto na denominação como na estrutura formal semelhante ao zamiapunga da região de Valença. Nesse culto os participantes dançam usando máscaras, e roupas especiais chamadas “mukike”(sic), enquanto percutem bastões metálicos e emitem sons não articulados…”

( Tese de Alexandre Guimarães – UNEB)

Bakongo? Chokwe?Mukixe?Nzambi-a-mpungo? O que é isto, Tio? Grego de negão?

Foi mal. Se até eu, ainda no embalo da pesquisa sou atropelado pelos indícios mais imprevistos e desconexos que desabam feito avalanche sobre mim, imagine vocês, inocentes pagãos, mais leigos que eu nesta história. Sim. Muita informação. Entendi. Vou baixar a bola então.

Faço então aquele famoso o ‘Freio de arrumação conceitual’

Morem na etimologia.

Bakongo é o mesmo Ba-Kongo, certo? Povo matriz (nos séculos anteriores ao 15) dos escravos bantu que vieram para o Brasil. A língua deste povo – muito complexa como vocês perceberão adiante – é o Kikongo ou Ki-Kongo, por sua vez, provavelmente a língua mãe destas outras línguas todas (e notem que eu não falei das línguas’ pai’). Sacaram? Uma língua bantu destas cuja gramática está estruturada em prefixos (e não em sufixos, como esta “nossa”.

Grosso modo: ‘Ba’ é prefixo para definir gente de um lugar chamado Kongo e ‘Ki’ a língua falada por esta mesma gente do Kongo. Do Kikongo clássico (da nobreza) ou popular (do ‘povão’) – do século 15 ou 16 – é que surgiram (imiscuídas em outras línguas regionais) as outras línguas que vieram para o Brasil como o Kimbundo e o Mbundo, idiomas (que me perdoem os bairristas d’Angola) de certo modo são irmãs. Ah! A palavra Chokwe é fácil, não é? É uma etnia do Sul e Sudeste de Angola atual.

Mukixe (aliás, uma palavra chave, crucial nesta nossa história) para o Tio vem muito provavelmente do vernáculo Kikongo clássico ‘Mu- Nkise’ (‘Mu’- ao que parece, seria o sufixo que forma o coletivo – o gentílico – com função parecida a do ‘Ba’ do Kikongo e línguas sucessoras) querendo dizer, literalmente  ‘mascarado encantado’, só que com uma tradução ainda mais literal que informo abaixo.

(Nananinanão. Não reze, não se benza, nem solicite ao pai de santo um ‘passe’. Nkise é uma palavra apenas, com um sentido lato, envolvendo um conceito estrito, além de outros simbólicos, como qualquer palavra, de qualquer língua. Nada a ver, diretamente com religião.)

Edison Carneiro, com efeito, viu uma antiga gravura de Mukixes angolanos (desenhados pelo geógrafo português Hermenegildo Capello – ou pelo seu colega Roberto Ivens – no século 19 em Mbaka, Angola) decorando o rótulo de uma beberragem afrodisíaca no Mercado Modelo em Salvador, Bahia, nos idos de 1930. Olha ele aí na gravura do rótulo.

Edison deu a eles, aliás – como de hábito no seu nagocentrismo exacerbado – importancia etnológica quase nenhuma (sequer desconfiando da semelhança provável destes Mukixes com o nosso Zambiampungo do Recôncavo, que devia estar ainda nesta época correndo solto na Bahia) julgando-os por sua própria conta, uma mera ‘réplica’ do egunguns’ jêje-nagôs” com os quais, de fato os Mukixes se assemelham, só que com milhares e milhares de quilômetros separando as duas culturas (bakongo e yoruba-jêje) sendo talvez impossível descobrir quem inventou a prática primeiro.

“…Formavam (os Mukixes, nota minha) em Angola uma sociedade secreta, ‘embora não tão elaborada como entre os nagôs’ . Misteriosos, vindos não se sabia de onde, mascarados, todo o corpo coberto aos olhares indiscretos, envolviam sua identidade em ‘segredo absoluto’. Sabe-se que davam conselhos e faziam críticas e advertencias públicas e particulares.

Capelo e Ivens que fixaram o traço de dois deles)…os interpretaram corretamente como ‘atores’ que intervinham na vida civil. A semelhança com os egunguns (sic) terá passado despercebida, entre outros motivos em virtude do termo angolano aplicar-se igualmentee a pequenos ídolos e representações antropomórficas de divindades menores…”

(Edison Carneiro . Revista do Instituto Brasileiro do Açúcar e do Álcool – 1975)

Logo nkise então (exatamente como o ‘orisa’ ou orixá do nagô ou o vudum do jêje) quer dizer apenas ‘imagem’, ‘ídolo’, ‘estátua’, representação simbólica de algo imaterial (um Deus, um espírito, uma energia cosmológica) materializada num objeto, ou mesmo num animal qualquer (um boi, um porco, um sapo, uma serpente, etc.). Então fica entendido que quando um bakongo (um angolano de hoje, enfim) via uma imagem de Santo Antônio católico, Nossa Senhora, São Lázaro, qualquer uma imagem destas aí, católica, religiosa ou não, definia logo assim, na lata:

_ Isto é um ”Nkisse disso!Um Nkisse daquilo!”

Fácil deduzir agora então que Mukixe (segundo o raciocínio pessoal do Tio, bem entendido) é, pois: um ‘Mascarado encantado’, uma pessoa portando uma máscara (e/ou uma vestimenta) encantada, a fim de cumprir funções rituais determinadas, porém – muito importante se frisar – não exatamente litúrgicas ou religiosas. Muito parecido com o que acontece com os dançantes do Zambiampungo, não é não? Mas cuidado: as aparências – e nisto o Tio toma na cabeça toda hora – quase sempre teimam em nos enganar neste campo.

(A propósito se liguem num detalhe muito importante: Não sei se vale para outros povos africanos, mas os doutos africanólogos todos afirmam, quase unanimemente que entre os bantu a diferença entre o profano é o religioso é quase imperceptível. E cá entre nós, vamos combinar: as religiões não são criadas para explicar nada – muitas vezes são criadas até para confundir -. As religiões tentam apenas explicar, de forma quase sempre canhestra, simplista, reducionista este mundo doido em que vivemos.

Se Nzambi como vocês já sabem – simples assim – é Deus e se já sabemos o que são Mukixes, mascarados idênticos aos dançantes do Zambiampungo, só faltou mesmo então traduzir Mpungo. Reflita, pois, e conclua você mesmo pelas entrelinhas desta recente e curiosa pista:

“… Os Mpungos não são realmente “deuses” no contexto que entendemos isso, mas são extremamente poderosos, o mais antigo dos ancestrais (sic).

Vou lhes dar uma lista de correspondência, para tornar mais fácil de compreender as energias básicas da Mpungo. Não cometa o erro de supor, por exemplo, que um Mpungo é um Orisa. Eles não são, e devem ser abordados com os ritos adequados para a cultura de onde provêm.”

(Fala de um Palero, ‘pai de santo’ de Palo Mayombe, uma religião do Caribe algo parecida com o nosso ‘Candomblé de Angola’)

Entenderam? Fácil não? Mpungo por estas definições cruzadas todas, tudo indica que significa Força Vital, energia cósmica, essencial (exatamente como o ‘Axédos nagôs!).

Nkise é, pois, o objeto, a coisa na qual esta força – o ‘Mpungo’ – se materializa.

Nzambi-a-Mpungo, a expressão poderia ser, portanto a ‘Força de Deus em si mesmo’ ou ‘Deus todo ‘poderoso’ como bem me orientou um angolano atento dia destes e a arguta linguísta Yeda Pessoa de Castro (citada também na tese de Alexandre Guimarães) concluiu. Dito tudo isto nestas filigranas etimológicas, traduzido o vocábulo antes misterioso, podemos então voltar à tentativa de desvendamento da tal dança baiana. É que também tenho candentes novidades por aí.

Afinal, o que é mesmo esta tal festa baiana do Zambiampungo?

Coisa de doido, não é mesmo? As pistas todas da história oral levando tudo ao mesmo lugar: Zambiampungo parece mesmo ser Mukixe, vindo da Angola mítica de todos nós:

“Segundo informações de meus pais, que já morreram, os zamiapungas vieram dos africanos. Tem uma história que em 1811, quando um descendente dos donatários da capitania de Ilhéus, resolveu mudar a povoação de Velha Boipeba para Nilo Peçanha, com o nome Nova Boipeba, os visitantes já foram saudados por enxadas e búzios. Então, desde aquela época eu acredito que já existia os caretas aqui, não o zamiapunga.”

(Depoente de Nilo Peçanha, BA, nem tese de Alexandre Guimarães)

Está bom, mas vocês perceberam um detalhe fortuito no depoimento da senhora mais velha? Disse ela, claramente: “…já existia os caretas, não o zamiapunga”. O outro informante de Alexandre, diz por sua vez diz:

“ Zamiapunga começou numa brincadeira com os filhos de escravos né ? (…) Mutupiranga, fazenda que tinha muita piaçava (…) e os trabalhadores eram tudo escravos e filhos de escravos.

Quando era noite de lua, não tinham o que fazer, tiravam as enxadas do cabo, cada um com sua enxada na mão, arranjavam tambor de carneiro, faziam aqueles tambores bonitos, faziam aquelas caixas né?!, arranjavam búzios da costa (…) pra fazer o purupupu.

Então faziam aquelas meia-lua, aquela lua, uns batendo caixa, outros batendo enxada, outros tocando búzio, e faziam aquela brincadeira. E Militão Rogério era filho de escravo. Quando acabou a escravidão Militão Rogério continuou fazendo a brincadeira com os operários da serraria…”

“… os guias, contraguias, mestre, contramestre. Vinham com aquela bandeira muito bonita que era seu Militão. Era o dono do zamiapunga que vinha com aquela bandeira, (…) Aí agora vinha aquela parte toda mais enfeitada atrás, como estes que estão saindo hoje, (…) vinha aquela parte com as enxadas, vinha aquela parte com os tambores batendo, vinha aquela parte com os búzios, ainda tinha aquelas cuícas (…) e a bagaceira das máscaras vinha atrás de tudo; eram aquelas cabeças!, era gente vestida de cão laçando as almas… era aquelas pessoas vestidas de coruja, pessoas vestidas de morte…”

 “…agora acontecia isso: eu me vestia de careta, por exemplo, eu moro aqui, eu não saia daqui de casa; eu arrudiava esses fundos todos pra sair lá fora pra ninguém me conhecer. Você morava lá na sua casa; você saia por aqueles fundos seus e saia lá no prédio de Anazilda prá ninguém lhe conhecer. Então, ninguém lhe conhecia. Aí reunia tudo (…); máscaras feias pra poder acompanhar o zamiapunga.”

“(…) Aí o povo ficava até olhando, achando bonito, muitas pessoas com medo, era uma maravilha mesmo o zamiapunga!!(…)Agora, na época a gente via aquelas máscaras aqui corria, todo mundo corria, eu mesmo corria que eu não gostava daquelas máscaras tristes, vestido de bicho, aqueles negócios feios.

Ainda mais quando dizia: ‘olha, vem atrás de tudo, olha, os caretas já passaram, ali atrás vem um vestido de alma e o cão laçando!!’ Aí o cão vinha com a corda rodando e a alma correndo, se escondendo, pedindo socorro, aí pra gente era uma morte, pois quando a gente era criança tinha medo. Então era muito bonito o zamiapunga, era muito mesmo!!…”

( Tese de Alexandre Guimarães – UNEB)

Hum… Brumas vagas de novo. Só que agora se dissipando aos poucos.

Esgotadas lá em cima – pelo menos em parte – as etimológicas, minhas pistas finais passaram a ser as evidências iconográficas, claro. Parti então para a análise das máscaras, das roupas e evidências outras (como aquelas sobre os búzios e -vá lá – as enxadas). Foi daí que sobrevieram as mais candentes surpresas. Tente olhar com a mesma picardia com que olhei as imagens seguintes e as compare com as imagens atuais do Zambiampungo baiano. Vejam só que coisa de maluco:

Mal consigo guardar por mais algumas linhas este segredo final – ainda não de todo revelado, de tão intrincado que é – Ai! Como lamento decepcionar os leitores mais afrocentrados (como eu mesmo, aliás), mas mesmo assim vou em frente. É porque à luz destas minhas últimas conclusões, os elementos mais seminais constitutivos da dança do Zambiampungo, pelo menos como ela nos aparece hoje, após o trabalho de ‘resgate’ da professora Maria Auxiliadora Netto Camardelli parecem estar bem longe de onde estamos procurando. As evidências africanas se escafederam! Quase desaparecem quando acendi estas novas luzes.

Que Mukixe que nada, gente! O Zambiampungo de agora, de hoje em dia se parece muito mais é com os…Caretos de Portugal!

“Máscaras resgatam auto-estima das aldeias transmontanas”

“…O traje dos caretos da Lagoa de Mira (Portugal) distingue-se pelas cores garridas, com predominância do vermelho, e pelas máscaras, de onde sobressaem uns enormes chifres. A saia do careto é vermelha, ‘numa alusão ao pecado’, a camisa branca, ‘símbolo de pureza’, explica João Luís Pinho. Estes seres demoníacos fazem-se ainda acompanhar por chocalhos e campainhas que agitam endiabrados, aumentado o efeito diabólico que querem transmitir…”

Pois é. Estranhas, porém gritantes evidências. Teria tido a ressemantização feita pela emérita professora Lilli Camardelli do Zambiampungo a intenção de ser a expressão mais fiel possível do que o Zambiampungo realmente foi no passado? Se foi isto, o Zambiampungo na verdade, teria sempre refletido então uma dança na verdade portuguesa (e não africana), oriunda do tão tão distante Trasosmontes.

Mas sendo assim – Ó ! – como teria florescido a tal dança de tugas se mantido tão vívida, não entre os brancos de Ilhéus e adjacências como seria comum, mas sim entre negros descendentes de africanos e – o que é mais estranho, pelo menos no campo da etimologia – mantendo o tão impróprio nome de uma entidade africana ‘da gema’ como o tal do Zambiampungo?

Caramba! E até o calendário dos Caretos é igualzinho ao do Zambiampungo!

“…A força disto é tanta que, se reparar, este ciclo inicia-se com o dia de Todos-os-Santos, ao qual se segue o dia de Finados, um ciclo que termina no sábado da Aleluia. Há todo um conjunto de ligações à morte…”

 (Paula Godinho “Festas de Inverno com Máscaras”, do Instituto de Estudos de Literatura Tradicional (IELT), da Universidade Nova de Lisboa)

Melê culturalista ou mistério etnológico de um sincretismo afro-luso inexplicável?

“… E o Cristianismo em relação a algumas festas anteriores colou-se-lhes ou perseguiu-as. Aquilo de que falamos quando nos reportamos aos Diabos representados nestas festas, são eles próprios uma construção feita à posteriori em relação a outras personagens que provavelmente não teriam nada a ver com o Diabo, diz a coordenadora do projecto…”

(Paula Godinho Festas de Inverno com Máscaras”, do Instituto de Estudos de Literatura Tradicional (IELT), da Universidade Nova de Lisboa)

Viram lá: O povo da Bahia já chamava a coisa de ‘Caretas’. E a Bahia inteira – que eu saiba – até hoje brinca o Carnaval usando aqui ali, esparsamente esta prática dos… Caretas, exatamente como os gajos de Trasosmontes chamam suas máscaras de… ‘Caretos”. Tudo a ver. Incrível, não é não? Os retalhos repicados nas roupas, as máscaras de pano, com um que de teatro vicentino, renascentista, tudo look portuga, nada a ver com as imagens dos Mukixes, que são máscaras de madeira esculpida (os portugas também as usam, mas esporadicamente) , roupas de palha, estas coisas assim, do mato.

Ai meu Deus! Quer dizer que o Zambiampungo baiano de hoje em dia, na verdade  seria esculpido e escarrado os Caretos de Portugal? Como poderia ser isto?

Ai, Jesus!

(Calma, gente. Eu posso explicar. Não percam o desfecho da trama no post final)

Spirito Santo

Janeiro 2012

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